Entrevista:O Estado inteligente

domingo, julho 24, 2005

Merval Pereira O que fazer?

O Globo

O fracasso da experiência sindicalista-petista no governo, a cada dia mais flagrante, pode ser simbolizado no Land Rover que o dirigente sindical Sílvio Pereira recebeu de presente do diretor de uma empreiteira que tem negócios com a Petrobras. O governo de um ícone do novo sindicalismo brasileiro, que já teve quase um terço de seus ministros saídos das lutas sindicais, e inúmeros cargos da estrutura estatal de poder ocupados por sindicalistas, vai entrar para a história da esquerda como mais uma experiência prática a ser discutida à luz do famoso livro de Lênin "O que fazer?", escrito em 1902 para o 2 Congresso do Partido Social Democrata Russo e adotado como fórmula para a organização partidária dos socialistas revolucionários.

Nele, Lênin chamava a atenção para os riscos da incorporação pura e simples de lideres sindicais à política, sem uma preparação para serem líderes socialistas. Diz Lênin em "O que fazer?": "Na maioria dos casos, concebe-se o militante ideal muito mais semelhante a um secretário de sindicato do que a um chefe político socialista. Por que o secretário de qualquer sindicato inglês, por exemplo, ajuda sempre os trabalhadores a sustentar a luta econômica, organiza a denúncia dos abusos nas fábricas, explica a injustiça das leis e disposições que restringem a liberdade de greve e a liberdade de colocar piquetes perto das fábricas (para avisar a todos que tal fábrica está em greve), explica a parcialidade dos juízes pertencentes às classes burguesas. Em resumo, todo secretário sindical sustenta e mantém a luta econômica contra os patrões e o governo".

Mas Lênin ressalta que "nunca será bastante insistir em que este não é um social-democrata, que o ideal do social-democrata não deve ser o secretário sindical, mas o tribuno popular, que sabe reagir a toda manifestação de arbitrariedade de opressão, onde quer que se produza e qualquer que seja o setor ou a classe social que afete; que sabe sintetizar todas estas manifestações em um quadro único da brutalidade policial e da exploração capitalista; que sabe aproveitar o menor acontecimento para expor ante todos suas convicções socialistas e suas reivindicações democráticas, para explicar a todos e a cada um a importância histórica universal da luta emancipadora do proletariado".

É uma antiga discussão se os trabalhadores não podem chegar aos ideais socialistas sem a ajuda dos intelectuais burgueses, e esse texto de Lênin leva a essa conclusão, embora a tese não apareça em nenhum outro texto seu. O PT, nascido da união de sindicalistas com intelectuais paulistas, sempre viveu essa dicotomia interna, espelhada nas diversas facções em que se divide. Na época em que escreveu "O que fazer?", Lênin combatia a tese, difundida entre os socialistas, de que bastavam as reivindicações econômicas para dar aos trabalhadores consciência de classe.

O sociólogo Francisco Oliveira, professor da USP e um dos fundadores do PT, hoje um dissidente fervoroso do governo Lula, foi o primeiro a registrar que a elite do sindicalismo passou a constituir uma nova classe social no Brasil ao ocupar posições nos conselhos de administração dos principais fundos de pensão das estatais e do BNDES. Só a Previ tem mais de 200 cargos nos conselhos das maiores empresas do país. Os sindicalistas ocupam vários cargos importantes nos Estados, como as Delegacias Regionais do Trabalho. O presidente do Serviço Brasileiro de Apoio à Micro e Pequena Empresa (Sebrae) é Paulo Okamoto, que foi diretor do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e é tão amigo de Lula que é quem faz seu imposto de renda.

Jair Meneguelli , que presidiu o sindicato, é desde o início do governo Lula, presidente do Serviço Social da Indústria (Sesi), que tem orçamento anual de cerca de R$ 900 milhões. O cargo é tão bom que Meneguelli abriu mão de seu mandato de deputado federal — que deveria ter assumido como suplente — para continuar nele, com um salário estimado em R$ 30 mil. Na república petista, o festival de nomeações de sindicalistas para diretorias e conselhos de estatais, como Banco do Brasil, Petrobras, Itaipu, Chesf, tem o mesmo teor das nomeações fisiológicas em outras administrações, tão denunciadas pelo próprio PT. Com os escândalos, muitos desses empregos foram desativados.

Essa verdadeira "república sindicalista" foi sendo moldada à medida que decisões ampliaram o espaço de atuação e revitalizaram as finanças do sistema sindical brasileiro. O governo autorizou, por exemplo, os sindicatos a criar cooperativas de créditos que poderão funcionar como bancos. Além disso, permitiu-lhes instituir, na reforma da Previdência, planos de previdência complementar. Como as regras só permitem planos de previdência fechados, os sindicatos não terão muita concorrência privada. Uma medida em especial reforçou o poder de fogo das centrais sindicais: a autorização para que empréstimos sejam dados com desconto na folha de pagamento, com a intermediação dos sindicatos, o famoso crédito consignado que está no centro das acusações de beneficiamento do banco BMG, um dos que financiou a farra do lobista Marcos Valério.

Não apenas o Land Rover de Silvinho Pereira, mas os ternos bem cortados de Delúbio Soares e os charutos Cohiba, que passaram a ser símbolo de status na "república sindicalista" de Lula, da mesma maneira que o uísque Logan ou a gravata Hermes identificavam os componentes da "República de Alagoas" de Collor, têm uma explicação histórica de Lênin: "É comum a crença de que a classe trabalhadora tende ao socialismo. E isso pode ser verdade no sentido em que a teoria socialista revela as causas da miséria dos trabalhadores. No entanto, a força com que a ideologia burguesa se impõe sobre a classe é ainda maior".

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