O Globo
O presidente Lula, à medida que cresce a crise política em que seu partido envolveu o país, parece perigosamente reaproximar-se da tese de que uma conspiração elitista pretende derrubá-lo, tese que volta e meia o tenta, especialmente quando a situação piora para o lado dele e dos seus. Ontem, diante de uma platéia de operários da Reduc, garantiu que a elite não o fará abaixar a cabeça, não sem antes afirmar que está para nascer quem possa lhe dar lições de ética.
Se Lula não tem pelo menos dúvidas em relação aos negócios de seu filho com a Telemar, ou se não considera pelo menos discutível ter morado durante anos em uma casa que pertencia a um amigo empresário que tem negócios com o Estado brasileiro, então sua noção de ética pode ser pelo menos questionada.
Esta bravata caberia bem, porém, se viesse acompanhada por uma declaração indignada de que foi traído por alguns de seus mais próximos companheiros, e de um pedido público de desculpas pelo que fez o partido do qual é fundador e principal líder. Em vez de bater no peito, jactando-se de uma qualidade da qual já não pode se valer completamente, o presidente Lula deveria estar comandando uma ampla campanha de radical expurgo interno do PT, exercendo a influência que nunca deixou de ter no partido.
Se há uma conspiração elitista em movimento nos bastidores políticos, ela visa, ao contrário, a preservá-lo da crise para que possa terminar seu mandato a salvo de um processo por crime de responsabilidade. Não interessa às elites, nem políticas nem econômicas, interromper o mandato do presidente Lula, se não por uma visão histórica, quanto mais não for por mero egoísmo.
As elites econômicas, felizes com as políticas adotadas até o momento pela equipe do ministro da Fazenda, Antonio Palocci, querem tudo, menos o fantasma do vice-presidente José Alencar a atormentar-lhes com a possibilidade de experimentar na prática, com a caneta do presidente da República, a tese de que a taxa de juros pode baixar drasticamente sem afetar em nada o equilíbrio das contas públicas, nem assanhar o adormecido dragão da inflação.
Qualquer criatividade estimulada pelos conselheiros econômicos do vice Alencar pode fazer desandar a economia, e isso todos temem, inclusive os investidores estrangeiros. Não é à toa que alguns dos principais bancos de investimentos internacionais estão revendo suas posições no Brasil, ou mudando para baixo suas perspectivas quanto ao futuro da economia brasileira. A crise política começa a dar sinais de que é muito maior do que se supunha anteriormente, e os investidores, assim como os políticos, já não estão tão seguros de que no final o presidente Lula não será afetado diretamente por ela.
Também à elite política não agrada, pelo menos no momento, a perspectiva de uma crise institucional que leve a um processo de impeachment do presidente Lula. Não que sejam bonzinhos, mas porque não há garantia sobre o que aconteceria deflagrado o processo. No momento não há clima político favorável ao processo de cassação de um presidente ainda popular. Qualquer avanço nesse sentido poderia provocar um clima de tensão política incontrolável, com conseqüências imprevisíveis.
Mas o presidente deveria saber que, com o andar das investigações, dificilmente sua imagem será eternamente preservada, e poderia aproveitar este momento em que ainda mantém a confiança de grande parte da população para fazer avanços em busca de um clima de entendimento político que ajudasse a encaminhar uma solução para a crise, ao invés de acirrá-la.
Ao contrário, volta e meia cai na armadilha populista de tentar jogar os que ainda acreditam nele contra uma elite supostamente antagônica, ao mesmo tempo em que se aproxima dos setores mais retrógrados dessa mesma elite em busca de apoio. Trocar Olívio Dutra, fundador do PT, por um indicado do PP protegido de Severino Cavalcanti, Delfim Netto, Francisco Dornelles e Pratini de Moraes não é propriamente um manifesto contra a elite conservadora.
Visitar o ex-deputado Ricardo Fiúza em Pernambuco, um dos mais aguerridos componentes da tropa de choque do ex-presidente Fernando Collor, vítima de uma campanha avassaladora do PT na CPI dos Anões do Orçamento, não é, definitivamente, uma atitude que se possa interpretar como contrária à elite política que conspira contra ele. E vir a público, num dos raros pronunciamentos sobre a crise de corrupção deflagrada pelo PT, para tentar justificar o injustificável, dizendo que sempre se fez uso do caixa dois na política brasileira, não é papel de um político que se considera o mais ético de todos.
Enquanto faz esses movimentos erráticos que não são compreendidos pela população menos esclarecida, que engana com a balela de uma perseguição da elite, vai também o presidente Lula mexendo todos os pauzinhos que pode, através dos representantes do PT nas diversas CPIs montadas, para empacar as investigações. E, no discurso, diz que sempre foi a favor de todas as CPIs, e que todos que erraram devem pagar. Até agora, no entanto, só fez tentar proteger seus apaniguados, seja no partido, seja no governo, e nada de "cortar na própria carne".
Mais de 40 pessoas, de variados escalões do governo, foram afastadas, mas nenhuma delas sofre qualquer tipo de investigação ou foi processada por malversação do dinheiro público. Uns pedem aposentadoria, outros vão para cargos menos vistosos, outros retornam a seus postos no Congresso, alguns pedem desfiliação do partido e ninguém dá a mínima explicação.
Enquanto isso, as caixas de documentos abertas na CPI dos Correios vão revelando uma escandalosa rede de corrupção nos órgãos públicos e na base parlamentar aliada — respingando aqui e ali em políticos de outros partidos. E tudo isso ocorreu no governo da pessoa mais ética do país, quiçá do mundo.
Entrevista:O Estado inteligente
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