Nunca o Brasil exibiu um desfile tão aparvalhado de caras de paisagem como este a que se assiste no palco da CPI dos Correios. Discursos e indagações peripatéticas de parlamentares não conseguem abalar a performance calculista dos depoentes. A escassez de verdade só é comparável à abundância de sorrisos de Mona Lisa, se bem que o termo liso(a) não é o mais apropriado para designar bolsos polpudos e perfis sem compromisso com lisura. Signos de fuga e contorcionismo se misturam a sinais de deboche e cinismo, formando uma corrente infindável de negativas que sugestionam os ouvintes a um beliscão para descobrir se o que presenciam é sonho ou realidade. Impressiona a pancadaria no português, com socos que enchem o saco de Ss rapidamente, tão grande é o número de plurais assassinados por períodos gaguejados. Olhos franzidos, lábios arqueados e dedos crispados só não causam mais constrangimento ao espectador porque uma leitura mais otimista aponta para um país mais limpo e menos pegajoso. A tênue esperança não elimina, porém, a impressão de que, naquele ambiente de verdades esfareladas, a política brasileira mostra o que tem de pior. E o pior começa com a síndrome do transtorno psicótico compartilhado, um delírio místico que a psicologia explica como pensamento ou atitude de uma pessoa transferido a outra, pelo fato de terem afinidade. Tal fenômeno, denominado folie à deux, é bem conhecido na área psiquiátrica e tem como referência, entre nós, um caso em que mãe e filha, em Minas Gerais, crendo na própria santificação, se imaginaram 'grávidas de Jesus', chegando até a se trancarem num quarto da casa para a realização dos 'partos'. A mãe, dependente e fraca, entregou-se ao poder de sugestão/dominação/imitação da filha. Ora, o que estamos vendo no palanque das CPIs é algo tão semelhante que poderia ganhar o epíteto de folie à trois. Marcos Valério, o agenciador dos recursos, Silvio Pereira, o piloto dos cargos no governo, e Delúbio Soares, o distribuidor do dinheiro, formam a tríade da síndrome do delírio repartido, que, infelizmente, parece ter encantado até o presidente Luiz Inácio. As notas estavam tão afinadas na orquestra dos três tenores que a rouquidão de um deles - Pereira - não chegou a prejudicar a harmonia do conjunto. O tom maior sonorizava a idéia de que os recursos tomados em bancos não se destinavam ao mensalão, mas ao financiamento de campanhas. O caixa 2 veio à tona. E o que disse o presidente da República na desastrada entrevista de Paris? Que todos os partidos usam 'sistematicamente' o cofre escondido. Ao puxar a crise para si, Lula deu força à síndrome do delírio, agora uma folie à quatre. Livrar o governo da sombra da corrupção e desviar o tiroteio para a arena partidária foi a fórmula engendrada para aumentar a blindagem em torno do presidente e dividir prejuízos. A artimanha, também usada pelo deputado Roberto Jefferson quando abriu o tiroteio, poderia dar certo, não fosse a seqüência de depoimentos sinalizando o mesmo ponto de fuga. Coisa arrumada demais gera desconfiança. Ameaça, assim, desmoronar a 'estratégia do gambá', pela qual o fedor do bicho se impregna nas pessoas que nele pegam. A mesma estratégia foi denunciada por José Genoino, então presidente do PT, quando disse que queriam jogar em seu partido a lama que escorria nos outros. É engraçado. Morrer para salvar o PT; ressuscitar o projeto hegemônico do partido, aquele inspirado no Partido Revolucionário Institucional que governou o México por 70 anos; rasgar o ventre para que o sangue jorrado pudesse desviar a atenção da sangria no governo Lula. Esse era o golpe dos três gladiadores, que só faltaram gritar a saudação romana: 'Ave, PT, morituri te salutant' (salve, PT, os que vão morrer te saúdam). Que espetáculo deprimente! Nem o cansaço nem a dieta franciscana de água foram capazes de conferir grandeza às falas. Para piorar, escudados em habeas-corpi, os depoentes se restringiram ao vocabulário-papagaio, repetido e monótono, reservando-se ao silêncio quando o aperto era maior. Escudavam-se no direito de não dizer ou dizer não. Legal é. Será legítimo a quem exerce o múnus público - num partido político, por exemplo - deixar de responder a questões que interessam à coletividade? Algo mais sobra do repasto fisiológico - cooptação de parlamentares, repasse de dinheiro a partidos - que expõe suas pústulas em cena aberta para todo o Brasil. Além de repugnância, indignação e descrença, remanesce a impressão de muita covardia e mediocridade. Quão medíocres são as pessoas que tentam encobrir desesperos com a linguagem tatibitate dos orangotangos. Não se ouve deles expressão de uma crença, de um ideal, de um sonho, coisas que são o cimento do caráter. Deles apenas se extraem advérbios de negação e uma saraivada de cacoetes que, no fundo, escamoteiam poderes manejados, favores mendigados, dinheiros acumulados, dignidades forjadas no cobre e almas encharcadas na lama da corrupção. Iguais a ratos saindo do barco em perigo, todos procuram um caminho de fuga. Uma fuga em ré maior. A debandada por trás é tão superlativa que chega a atingir o mandatário-mor da Nação. Lula diz que não sabe o que nunca soube. Será verdade? Seja qual for a resposta, emerge a figura de um governante que muda de papel. Deixa de ser administrador para ser crítico. Ao jogar o erro nos outros, no seu partido e até nos cidadãos (lembram-se quando o presidente pediu que os brasileiros tirassem o traseiro da cadeira?), ele foge de responsabilidades. Mais que isso, confessa inapetência para governar. Pergunta recorrente: por que tudo isso ocorre? Porque o PT e o presidente não estavam preparados para assumir o comando do País. E assim o Partido dos Trabalhadores, no calor dos 25 anos de idade, está dando adeus às velhas armas. Jamais será o mesmo. A ponte que o liga ao passado foi bombardeada. E, do jeito que as coisas vão, a bomba da ponte jogará estilhaços no colo presidencial. Se já não jogou.?
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Entrevista:O Estado inteligente
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domingo, julho 24, 2005
Fuga em ré maior Gaudêncio Torquato
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