Entrevista:O Estado inteligente

domingo, julho 24, 2005

Democracia ameaçada Paulo Renato Souza

O Estado de S Paulo

O maior crime cometido pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e por proeminentes membros do governo do presidente Lula não tem tido o destaque merecido neste mar de denúncias a que estamos assistindo. É o crime cometido contra a democracia e o aperfeiçoamento democrático de nosso país. O presidente recebeu um mandato das urnas e em função dele jurou defender e aprimorar a democracia brasileira. Hoje sabemos que, desde sua posse, seu partido e alguns de seus ministros mais próximos lideraram o maior esquema de corrupção de que tem notícia nossa História, destruindo o já precário sistema partidário existente e jogando muita lama sobre a instituição maior do regime democrático, o Congresso Nacional. O problema não é apenas a fraude no financiamento das campanhas políticas. Apesar de grave em si mesmo, esse tema fica bem menor diante do assunto muitíssimo mais escabroso que é o uso do dinheiro público para o financiamento do partido do governo, para o enriquecimento privado de alguns membros de sua nomenklatura e para a compra de apoios de outros partidos no Congresso.

Infelizmente, o roubo de dinheiro público com as mais diversas finalidades não é novo em nosso país. Por essa razão um presidente já sofreu impeachment, vários parlamentares foram cassados, alguns juízes e prefeitos estão presos ou sendo processados. Ao contrário do que afirmou o presidente Lula na sua insólita entrevista dada em Paris na semana passada, o PT fez sistematicamente o que ocorria ocasionalmente, mas não era a regra geral na política brasileira. Como conseqüência, o partido do presidente e alguns de seus auxiliares mais próximos conspiraram e agiram concretamente para desmoralizar o sistema partidário e a democracia brasileira, ao substituírem o debate político pela compra de parlamentares e a arrecadação legal de fundos pelo uso do dinheiro público para o financiamento de suas atividades partidárias.

A ameaça à democracia não se esgota aí, mas está presente também na resposta do governo à crise. De um lado, o próprio presidente chamou uma cadeia de televisão para fazer proselitismo de seu governo, tentar mistificar os fatos ao afirmar que nunca se combateu tanto a corrupção no País e dizer inverdades ao assumir a paternidade de medidas que já haviam sido tomadas pelo governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. De outro, a ameaça revelase também na ação espalhafatosa e absolutamente parcial da Polícia Federal, associada com segmentos do Ministério Público e do Judiciário, nos momentos imediatos à divulgação dos escândalos.

Não estou criticando o que foi feito, mas sim o que não o foi. O caso Waldomiro Diniz arrasta-se há bem mais de um ano sem nenhuma solução por parte de nossa Polícia Federal, que se mostra tão eficiente e 'republicana' em outros episódios. O senhor Marcos Valério está até agora em liberdade para queimar suas provas, como todo o Brasil presenciou pela televisão. O Banco Rural vem freqüentando as páginas de denúncias de lavagem de dinheiro desde a CPI do Banestado, sem que seus dirigentes sejam molestados. Isso sem contar as denúncias sobre a existência de um cofre na própria sede do PT. Em nenhum desses temas pudemos observar a força do governo no combate à corrupção. Usar o poder do Estado para mistificar e mentir e utilizar o poder policial de forma discriminatória, com claros propósitos de desviar a atenção da população dos graves problemas surgidos do próprio governo, são condutas que se aproximam mais de regimes totalitários do que da democracia. Até a última semana o presidente estava de certa forma afastado dessas denúncias, mesmo porque a oposição fazia de conta que acreditava ser ele alheio a todos esses fatos. Depois daquela sua entrevista em Paris já citada, essa atitude fica mais difícil de ser mantida. Garantir a governabilidade, isolando o presidente da crise, era o argumento até agora usado por muitas lideranças empresariais e da oposição para sua postura benevolente para com o primeiro mandatário. Esse raciocínio desconsidera o tamanho da crise e a ameaça à democracia que ela encerra.

A Nação e suas lideranças devem pensar hoje na governabilidade futura do País, e não nos fatos episódicos imediatos. Desde o processo de redemocratização, esta crise traz consigo a maior ameaça à sobrevivência do regime democrático em nosso país, pela desmoralização e destruição das instituições. Hoje, ninguém é capaz de prever o seu desfecho e ele pode ser muito ruim para o futuro das liberdades em nosso país. O único caminho que resta aos democratas é promover a apuração minuciosa dos fatos e a punição rigorosa dos responsáveis, sejam eles quem forem e estejam nos partidos em que estiverem. Não pode haver transigência e não podemos ser lenientes, sob pena de comprometermos nosso futuro de sociedade livre e democrática. Sem dúvida, a apuração dos fatos e a punição dos responsáveis serão um processo longo e dolorido para o País e certamente muitas surpresas aparecerão no seu curso. Se esse processo for levado até o fim com o rigor e a independência necessários, assistiremos a uma espécie de refundação da democracia brasileira, que pode dar lugar a instituições mais sólidas, a partidos mais organizados, a uma vida pública mais transparente. Se não conseguirmos isso e sucumbirmos à tentação da contemporização, seremos todos levados de roldão pela crise para um futuro incerto e sombrio.?

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