Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 09, 2005

Escândalo começou com 3 000 e já beira os 2 bi de reais

veja
Já passou do bilhão

O escândalo começou com 3 000 reais
no bolso de um servidor de quarto
escalão. Já revelou uma dinheirama
e não pára de degolar autoridades


Otávio Cabral

NESTA REPORTAGEM
Gráfico: A roda da fortuna

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A cronologia dos escândalos

Há oito semanas, o escândalo começou com um funcionário de quarto escalão arrecadando uma gorjeta de 3.000 reais, destinada a ser o adiantamento de uma propina de 15.000 reais. Na semana passada, como que movido com a propulsão dos foguetes, o escândalo já estava prestes a ceifar o segundo ministro, o companheiro Luiz Gushiken, responsável pela área de comunicação e publicidade do governo, e já apareciam cifras beirando os 2 bilhões de reais. É uma trajetória fulminante e devastadora, que credencia o atual escândalo a figurar entre os grandes rombos da história recente. Está próximo do da máfia dos vampiros, que sugava dinheiro da Saúde, cujo estrago foi estimado em 2 bilhões de reais. Próximo da roubalheira na velha Sudam, que veio a público em 2001 e também bateu na casa dos 2 bilhões de reais. Rivaliza até com o pai de todos os escândalos, aquele que derrubou Collor e enjaulou seu sócio PC Farias, estimado em 2,5 bilhões de reais, em valores de hoje. O caso de agora, no entanto, tem uma diferença central. As cifras bilionárias orbitam, pelo menos até aqui, em torno de um único personagem: o mineiro Marcos Valério Fernandes de Souza.

Na quarta-feira passada, o empresário depôs na CPI dos Correios durante catorze horas, no Congresso Nacional. Deu respostas telegráficas, deixou pencas de dúvidas no ar, mas conseguiu atravessar o interrogatório sem fazer mais estragos do que os já existentes. O estrago maior apareceu na primeira leva de documentos sigilosos que aportou na CPI. No pacote, em que aparecem mais de 300 documentos diferentes, dos quais 77 são sigilosos, descobre-se a vida financeira de Marcos Valério de 2000 até agora. Nos papéis, pode-se constatar que o empresário é um homem rico desde aquele ano, mas tudo deu um salto espetacular de 2003 em diante, período que coincide com o governo do PT. Tudo é tudo mesmo: seu patrimônio pessoal, sua movimentação bancária e a dinheirama que passou pelas contas de suas empresas. Em 2000, Marcos Valério tinha um patrimônio de 2,9 milhões de reais e vinha aumentando sua riqueza a um ritmo de uns 15% ao ano – um desempenho "bastante significativo", mas longe de ser inexplicável, segundo atestou a VEJA, falando em tese, o professor Claudio Felisoni de Angelo, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP). Em 2003, no entanto, sua fortuna saltou de 3,9 milhões de reais para 11 milhões de reais, num crescimento sensacional de mais de 180%. Nesse caso, é difícil de explicar. "Um salto desse tamanho, só ganhando na loteria", garante um alto técnico da Receita Federal que teve acesso aos dados patrimoniais do empresário.


Ana Araujo
NOME AOS BOIS
O deputado Jefferson: ele é quem trouxe a público o nome do empresário Marcos Valério

A CPI dos Correios já identificou que Marcos Valério é dono de dezoito empresas, mas até agora recebeu dados detalhados da vida financeira de apenas seis delas. De janeiro de 2000 até maio de 2005, essas seis empresas movimentaram 1,6 bilhão de reais. Precisamente 1.616.381.765,46. A CPI já aprovou a quebra do sigilo bancário e fiscal de outras dez companhias do empresário. Se for mantida a proporção, a movimentação financeira de Marcos Valério pode ultrapassar os 3 bilhões de reais! O que era um escândalo de tostões definitivamente já se transformou num escândalo de bilhões. Escândalo porque, da fortuna que passou pelas contas de sua empresa, a origem é duvidosa em alguns casos. Só no Banco do Brasil circularam quase 460 milhões de reais sem origem identificada. O pior é que o Banco do Brasil não se preocupou em cumprir a lei informando de imediato ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) todas as movimentações financeiras acima de 100.000 reais – uma lei cujo espírito é tentar flagrar movimentações volumosas e atípicas para abater em pleno vôo qualquer atividade ilícita. O BB só informou ao Coaf dias atrás, depois que o escândalo veio à tona, inventando um exótico comunicado retroativo.


Adriano Machado/Folha Imagem
A DERRUBADA DA TRÓICA
Na semana passada, consumou-se a profecia de Roberto Jefferson, segundo a qual ele levaria junto José Dirceu (acima), Delúbio (abaixo, à esq.) e Silvio Pereira. Os três já caíram
Jonne Roriz/AE
Monica Zarattini/AE

A movimentação financeira nas contas bancárias pessoais de Marcos Valério e sua mulher, Renilda, também chama atenção. Entre 2000 e 2005, eles movimentaram 46,2 milhões de reais, o que dá uma média de 8,4 milhões de reais por ano. A dinheirama circulou por sete bancos diferentes, com destaque para o Banco do Brasil e o BankBoston, que juntos concentraram quase 70% da movimentação financeira do casal. O BankBoston cometeu o mesmo pecado que o Banco do Brasil. Só dias atrás, depois de ver o escândalo nas manchetes dos jornais, o BankBoston despachou um relatório de saques e depósitos superiores a 100.000 reais ao Coaf. Nesse informe retardatário, apareceram duas operações suspeitíssimas: uma transferência eletrônica de 782.000 reais e outra de 120.000 reais, ambas em favor de Glênio Sabbad Guedes, procurador da Fazenda Nacional. Por que um procurador receberia tanto dinheiro do empresário? Na explicação que deu, o procurador informou que a conta favorecida pertence a seu pai. Guedes disse que é apenas conhecido de Marcos Valério, mas já se sabe que o empresário lhe pagou passagens aéreas e até a conta do celular, transações incomuns entre apenas conhecidos.

Sob qualquer ângulo que se analise, suas empresas ou suas contas pessoais, Marcos Valério lidou com mais dinheiro do que parece razoável. "O movimento não é compatível com alguém que tenha como única atividade conhecida a publicidade", afirma Delcidio Amaral, o senador do PT de Mato Grosso do Sul escalado para presidir a CPI dos Correios e que, até aqui, tem tido um comportamento imparcial na condução dos trabalhos. "O que transparece dos dados é que ele tem uma atividade sob os holofotes e outra atividade subterrânea." Marcos Valério é acusado de ser o "operador do mensalão", distribuindo os 30.000 reais que o PT estaria pagando aos parlamentares aliados, mas integrantes da CPI dos Correios já começam a desconfiar que ele é muito mais do que isso: suspeitam que comande um centro de lavagem de dinheiro, que, dado o volume de recursos, não operaria apenas para o PT, mas também para outros esquemas. Para averiguar essa hipótese, a CPI vai investigar cinqüenta operações de crédito da DNA, uma das agências de publicidade de Marcos Valério, nas quais se enviou um total de 750.000 dólares ao exterior.


Ed Ferreira/AE
ARQUIVO SECRETO
Sessão da CPI dos Correios: nos arquivos, mais de 300 documentos, dos quais 77 são sigilosos A cronologia dos escândalos em

À medida que se avoluma a folia financeira do escândalo, seus estragos políticos também crescem. Agora, seis semanas depois de o deputado Roberto Jefferson ter ameaçado que, se fosse incriminado no escândalo, levaria junto José Dirceu, Silvio Pereira e Delúbio Soares, a profecia se consumou. No dia 16 de junho, José Dirceu deixou o comando da Casa Civil, cinqüenta horas depois de Jefferson ter dito, em depoimento, a frase já famosa: "Rápido, sai daí rápido, Zé". Na semana passada, os outros dois que compunham a trindade ameaçada por Jefferson, a quem se deve creditar, também, o surgimento do próprio Marcos Valério no caso, caíram. Na última segunda-feira, Silvio Pereira, que participou da divisão política dos cargos do governo, pediu seu afastamento do cargo de secretário-geral do PT. No dia seguinte, sob o impacto da revelação feita por VEJA de que o partido fizera um empréstimo bancário de 2,4 milhões de reais com o aval e o pagamento de uma prestação por parte de Marcos Valério, o tesoureiro Delúbio Soares também se afastou do cargo. Dos mais diretamente ameaçados, apenas o ex-deputado José Genoíno, presidente do PT, ainda permanecia no cargo até a noite de sexta-feira passada. Mas badalava forte.

Quando VEJA divulgou o empréstimo de 2,4 milhões, Genoíno, que negara sua existência, admitiu que a operação existia e atribuiu o mal-entendido a Delúbio Soares, que lhe teria prestado informações incompletas. Genoíno disse que assinara o empréstimo "sem ler", razão pela qual ignorava que Marcos Valério era um dos avalistas, e ficou na muda sobre outras operações semelhantes. Mas já apareceu outro empréstimo, de 3 milhões de reais, contraído no Banco Rural, também com aval de Marcos Valério. Em nota oficial, o PT confirmou essa segunda transação bancária e, discretamente, encaixou no texto uma pequena Operação Uruguai, apelido que, desde a era Collor, se tornou sinônimo de farsa financeira destinada a esquentar dinheiro frio. Na nota, distribuída na sexta-feira passada, o PT informa que a parcela do empréstimo de 2,4 milhões que foi paga por Marcos Valério, de 350.000 reais, será devidamente reembolsada ao empresário na data de seu vencimento, em 22 de agosto próximo. Tudo como se fosse uma transação financeira banhada na mais alta normalidade.

É até provável que Marcos Valério venha mesmo a ser reembolsado, mas tal procedimento só entrou no plano das intenções petistas depois que se descobriram as relações ocultas do PT com o empresário. Antes disso, o partido não tinha a menor intenção de ressarcir os 350.000 reais a Marcos Valério. A prova está no balanço financeiro do PT apresentado ao Tribunal Superior Eleitoral, o TSE. No documento, o partido informa que, até o dia 31 de dezembro de 2004, tinha 20,4 milhões de reais em dívidas. Não há uma linha sobre a dívida de 350.000 reais com Marcos Valério. No balanço, os contadores do PT descrevem detalhadamente as dívidas com bancos, imobiliárias, gráficas e mesmo com pessoas físicas, como um tal de Clóvis Roberto Silveira, com quem o partido informa ter uma dívida de 495,97 reais por conta de uma "locação de bens imóveis". No entanto, nem uma linha sobre a dívida mais de 700 vezes maior com Valério. É um sinal eloqüente de que, até então, o PT entendera o desembolso do empresário como um presentaço do amigo – ou um dever do sócio, quem sabe –, tanto que os 350.000 reais só surgem como dívida na nota uruguaia do partido.

A dimensão de Marcos Valério em suas relações com o PT tem-se avolumado num ritmo acelerado. Na semana passada, surgiu outra novidade – a de que o empresário pode ter chegado ao ponto de negociar cargos no governo com políticos aliados. A denúncia – ninguém conseguiu entender se foi feita de forma proposital ou acidental – está numa nota emitida pelo deputado José Borba, do PMDB do Paraná. Borba foi acusado por Fernanda Karina Somaggio, a ex-secretária de Marcos Valério, de ser um dos receptores do dinheiro do mensalão. Borba enrolou-se um bocado: primeiro, disse que mal conhecia Marcos Valério, depois admitiu que tinha relações com ele, mas sempre negou qualquer participação no mensalão. Numa nota, destinada a se explicar, Borba informa que esteve com Marcos Valério nas ocasiões em que, como líder do PMDB, negociou cargos com o empresário. Cargos? Isso mesmo. "O que discuti com dirigentes do PT e o senhor Marcos Valério é o que lideranças partidárias discutem hoje e sempre e em todos os governos: a nomeação de seus partidários para cargos na administração", diz a nota. O tom solene da afirmação, próprio de quem pronuncia verdades peremptórias, produz uma dúvida cruel: Borba queria mesmo denunciar a participação de Marcos Valério na divisão de cargos ou deu com a língua nos dentes? Numa reunião do PMDB, o governador Roberto Requião, do Paraná, avaliando a situação, saiu-se com o seguinte diagnóstico: "Nem ladrão o Borba sabe ser". Requião é do mesmo partido e do mesmo estado que Borba. Deve saber do que está falando.

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