O Globo
Na véspera do 206 aniversário da Queda da Bastilha, os com-culote do andar de cima brasileiro foram à luta para defender a casa comercial Daslu. Treze de julho era também o 199 aniversário do dia em que Charlotte Corday, uma maluca mística, meteu uma faca no peito de Jean-Paul Marat, o jornalista que se intitulava "o amigo do povo". Atribui-se ao historiador Fritz Stern, da Universidade Columbia, a observação de que os ricaços brasileiros vivem num mundo anterior à Revolução Francesa. Talvez isso explique a defesa da Daslu. É uma Bastilha que finalmente encontrou quem lute por ela: "Aux armes, citoyens".
Marcharam os marqueses da Fiesp, um punhado de senadores e alguns sibaritas que por cá são denominados "colunáveis". (Pessoas que, por absoluta falta de qualificação, deixam-se apresentar como profissionais da arte de sair em colunas.) Juntaram-se tucanos e pefelês. Todos horrorizados. O grito da Fiesp deu a dimensão do episódio: "Fatos notórios recentes, vivenciados pela sociedade, revelam situação de anormalidade (?) Não há como se manter alheio ou indiferente a essa realidade".
Uma vizinha da Daslu, moradora da favela Coliseu, quando viu policiais armados de metralhadora, achou que a coisa ia ficar feia para sua gente. Surpreendeu-se ao perceber que a tropa foi "para o lado dos bacanas". Contrastes há em muitos lugares. Cinquenta quarteirões separam a pobreza do Harlem hispânico de Nova York do triângulo celestial formado pelas joalheiras Tiffany, Bulgari e Van Cleef, nas esquinas da Quinta Avenida com a rua 57. Os brasileiros são maiores, mas não é no tamanho do contraste que mora o problema. O que falta a Pindorama é o velho e bom capitalismo, no qual o sonegador é um concorrente desleal.
O capitalismo é um sistema no qual a rainha dos hotéis de Nova York, Leona Helmsley, tomou 18 meses de cadeia, mais uma multa de US$ 7 milhões por ter sonegado impostos e dito que pagá-los era coisa de gentinha. No mesmo dia em que se formaram no Brasil os Batalhões Daslu, o ex-gênio da WorldCom, Bernard Ebbers, foi condenado a 25 anos de prisão por ter fraudado o Fisco e os acionistas da empresa em US$ 11 bilhões.
É a falta de capitalismo que gera men$alões, Valérios, Delúbios, caixa dois, empregado sem carteira assinada, mala de bispo da Igreja de Deus e cueca infernal de petista. Pode-se dizer o que se queira do deputado Roberto Jefferson, mas jamais um empresário brasileiro denunciou um décimo das malfeitorias que ele levou ao ventilador. Muito menos a Fiesp.
Os Batalhões Daslu poderiam prestar um serviço ao capitalismo, à marca, ao Fisco, à patuléia e à representatividade das instituições patronais. Pediriam à Polícia Federal e à Receita que providenciassem uma lista com o preço unitário de cem itens do catálogo Dasluziano. Não o preço de venda. O preço de importação, aquele das faturas. Nele, uma gravata de Ermenegildo Zegna vale R$ 3 (o estacionamento custa R$ 30). Há vestidos de R$ 30 e camisas de R$ 15. Essa lista seria a base da maior liquidação de todos os tempos. A loja botaria um lucro de 100% em cima de cada peça e venderia a gravata do Zegna por R$ 8 (admitindo-se R$ 2 de novos impostos). Haveria vestidos Daslu custando menos de R$ 100. Seria o mensalão do bem.
Fantasia? Talvez não. Conta a lenda do Fisco americano que o núcleo da coleção da National Gallery foi doado à nação depois de um entendimento dos fiscais da Viúva com o banqueiro Andrew Mellon, secretário do Tesouro do presidente Herbert Hoover. Dizem até que foi uma "situação de anormalidade" estimulada pelo presidente Franklin Roosevelt. Esse entendia de capitalismo.
A cota do professor Thompson
O professor Phil Thompson, do departamento de estudos urbanos do Massachusetts Institute of Technology, foi ao Brasil. No aeroporto de Miami, ajudou um casal de idosos a tirar a bagagem da esteira. Quando ia cuidar de sua vida, foi solicitado por mais dois passageiros. Acharam que era carregador. Saiu parar correr pela orla de Salvador e na volta ao hotel foi barrado pelo porteiro. Esclarecida a sua condição de hóspede, a gerência desculpou-se.
Chegando a São Paulo, num jantar do andar de cima, digno de um professor do MIT e ex-assessor do prefeito de Nova York (David Dinkins), um casal convidou-o para conhecer uma fazenda. Descreveram a propriedade, do tempo da escravidão, com casa grande, cachoeira e terreiro. Seu comentário: "Não lhes ocorreu que essa era uma descrição desconfortável para um descendente de escravos, como eu, que não acha graça nesse tipo de fazenda."
Como tem gente acreditando que falar nessas coisas exacerba um sentimento racista adormecido, Johnson devia ficar com a parte que lhe cabe do latifúndio. Faria melhor se carregasse as malas dos brancos, saísse para correr de terno, ou com o passaporte americano pendurado no pescoço. Só um negro que não lembra seu lugar recusa um convite de um casal branco para visitar uma fazenda do tempo da escravidão.
Entre as atividades do professor Thompson, está uma colaboração voluntária com a comunidade de imigrantes de Framingham, na periferia de Boston. Lá um projeto de construção de um shopping ameaça quebrar dezenas de pequenos comerciantes brasileiros, quase todos brancos. Na cidade vivem pelo menos dez mil trabalhadores que deixaram Pindorama em busca de empregos, dólares e oportunidades. Lá existe um odioso sentimento antibrasileiro e o professor Johnson ajuda a combatê-lo.
Entrevista:O Estado inteligente
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Um comentário:
Reinaldo Azvedo:- Gaspari, pelo visto, gosta do que não gosto
4h35 - Em sua coluna deste domingo na Folha, Elio Gaspari fala da Daslu e faz um gracejo, dizendo que os "com-culote do andar de cima" saíram em defesa da Daslu. Lembra o revolucionário Marat logo no primeiro parágrafo. Achei a coincidência interessante. No dia 13, quando a loja foi invadida pela polícia, escrevi um texto ("A Daslu e a sede dos canibais") fazendo referência justamente a Marat — melhor ainda, citando um inimigo seu. Parece que Gaspari e eu temos avaliações distintas sobre aquele rapaz que se intitulava "o amigo do povo" — esse era o nome de um panfleto que editava. Marat tinha o péssimo gosto de achar que só vencia um debate se seu inimigo fosse para a guilhotina. Cobrava em cabeças a eficiência de seus argumentos. Daí que um adversário seu tenha dito, num acolorado debate, em que ele queria mandar alguma Tranchesi da hora para a lâmina: "Dêem um copo de sangue a este canibal, que ele está com sede". Entendo que a melhor coisa que Marat fez foi morrer assassinado, o que motivou o belo quadro de Davi. Sem contar que, assim, muitas outras vidas se salvaram. O resto de sua obra é lixo. Quem quiser ver a imagem, clique neste endereço http://www.hab.de/images/Marat-Mort.jpg. Para ler o meu primeiro texto sobre a Daslu, http://www.primeiraleitura.com.br/auto/leia.php?id=47612 — Reinaldo Azevedo
A Daslu e a sede dos canibais
Os canibais fiquem certos. Não me arrependo de uma miserável linha do texto que escrevi em defesa da Daslu ainda que Eliana seja culpada de tudo de que a acusam. Eu o assino de novo
Por Reinaldo Azevedo
Dêem um copo de sangue aos canibais, Eles estão com sede. Se Eliana Tranchesi cometeu um ou todos os crimes de que é acusada, que pague por eles. Mas já foi julgada e condenada? Digamos que seja inocente, algo a fazer com a sua reputação? Que Estado de Direito é este que primeiro pune para depois investigar? Todo empresário “deste país”, como diz aquele, deve recorrer ao STF para conseguir um habeas corpus preventivo. Sob qual pretexto? Qualquer um. A democracia à moda Putin-Lula-Chávez não precisa de motivos. Precisa de pretextos.
Dêem um copo de sangue aos canibais. Eles estão com sede. Quer dizer que a investigação está em curso há dez meses, e só agora se decidiu pela punição, invadindo a empresa e a casa de Eliana Tranchesi com homens armados até os dentes e coletes à prova de bala? Nada menos de 240 foram mobilizados. O que acharam que ela faria? Agredi-los com vestidos Chanel e gravatas Ermenegildo Zegna? Ainda que ela seja realmente sonegadora e tenha formado quadrilha, como se diz: a portaria de Márcio Thomaz Bastos (publicada nesta edição) foi respeitada? Vamos demolir a Daslu, como sugere ironicamente um leitor. Assim como se fez com o Carandiru. Vamos fazer da Daslu um monumento ao ressentimento e à vigarice.
Dêem um copo de sangue aos canibais. Eles estão com sede. Na TV, a casa de Eliana é chamada “mansão”. Vamos comer os ricos. Ricos não têm casa. Ricos têm mansão! Vamos prender Eliana Tranchesi e deixar os contrabandistas da 25 de Março à solta, já que cumprem uma função social. Vamos prender Eliana Tranchesi e deixar Marcos Valério, com seu habeas corpus preventivo (tenha o seu), à solta. E, junto com ele, Waldomiro Diniz e aqueles que compram congressistas e também os congressistas que se vendem.
Dêem um copo de sangue aos canibais. Eles estão com sede. A operação se chama “Narciso”, uma referência, sei lá, às pessoas que recorrem à Daslu para satisfazer a própria vaidade, esse sentimento pernóstico nestes dias. Bonito é roubar merenda escolar. É nomear maganos do partido para a comissão de licitação nas estatais. É superfaturar serviços de propaganda para pagar mensalão. É lotear cargos públicos para achacar empresas privadas. Isso é bonito. E, depois, bater no peito e arrotar moralidade. Sim, é verdade: o governo Lula, finalmente, começou para valer.
Dêem um copo de sangue aos canibais. Eles estão com sede. No caso Kroll, prenderam-se cinco funcionários acusados de grampo. Feita a perícia, tratava-se de antigrampo. No caso Schincariol, fez-se aquele carnaval antes mesmo que a empresa fosse autuada pela Receita. Não querem arrecadar. Querem punir para tirar o peso das suspeitas e das acusações dos próprios ombros. Reitero: se Eliana for culpada, que pague. Mas nada disso era necessário. A Polícia Federal não está defendendo o Estado de direito. Está ocupada em fazer videoclipe.
Dêem um copo de sangue aos canibais. Eles estão com sede. Sem a visibilidade dada à Daslu, nada disso estaria acontecendo. Não enfrentassem o governo e o partido oficial um tsunami de acusações, é provável que mesmo as irregularidades eventualmente comprovadas ganhassem um outro encaminhamento, extralegal talvez. Mas chegou a hora de dar a carcaça dos ricos aos pobres. Começou a fase Chávez do governo Lula. Que, atenção!, continuará, a exemplo do venezuelano, diga-se, absolutamente servil aos mercados e à jogatina financeira. Ou alguém acha que o Maluco de Caracas dá murro em ponta de faca? O risco da Venezuela está sempre pertinho do risco do Brasil.
Dêem um copo de sangue aos canibais. Eles estão com sede. Recebi mais de 40 e-mails sobre a Daslu. Os que me elogiam ou criticam, sem ofensa pessoal, estão publicados. Alguns ainda serão. Boa parte é impublicável, tal a grosseria — não contem comigo para me ofender, cambada! E tudo porque, há alguns dias, escrevi um texto sobre o preconceito e o ressentimento de que a loja e a empresária estavam sendo alvos. Ainda na coluna da Folha desta quarta, Elio Gaspari faz um gracejo com a sacola da Daslu, usada em seu texto como símbolo de alienação e elitismo. A moda pegou. Falar mal da Daslu, de Gaspari ao mais cretino dos homens, rende simpatia. Parece que foi ela que mandou Delúbio Soares ser quem é e fazer o que fez com o seu partido e com o Brasil.
Dêem um copo de sangue aos canibais. Eles estão com sede. As redações já estão coalhadas com as “provas” enviadas pela Polícia Federal. Vocês conhecerão todos os “horrores” de Eliana Tranchesi antes que ela mesma saiba o que se diz dela. Assim entendem ser o Estado de Direito. Acham que, assim, não há discriminação. A regra de ouro é a seguinte: já que não há Estado de Direito para os pobres, que não haja também para ricos. Se um pobre e preto pode ser preso a qualquer momento, sem justificativa, por que não uma loura rica? É o socialismo da miséria material e da indigência intelectual. Não nos ocorre dar ao preto pobre os mesmos direitos da loura rica. A primeira coisa que se faz é cassar os da loura rica. Igualando todo mundo por baixo. Enquanto Lula faz discursos enérgicos na França sobre as injustiças sociais no... Haiti. Lula para presidente do Haiti! Eis o meu lema.
Dêem um copo de sangue aos canibais. Eles estão com sede. Um homem plantado pelo PT na Abin refere-se aos parlamentares da CPI como “bestas-feras num picadeiro”. O seu exagero de agora revela o escândalo pregresso: o da sua nomeação. Recuperem o que disse este senhor quando foi nomeado. Está hoje no site. Ofereceu-se para ser esbirro de um projeto de poder, não para servir ao Estado brasileiro. Assim começam a se desenhar as instituições no país sob o PT. O chefe da Abin deve cair porque ou se precipitou no seu juízo (isso deveria ser para uma etapa posterior da revolução de costumes) ou porque tornou pública a razão que sempre o animou no cargo. Mas é isso o que eles dizem lá entre eles sobre o Poder Legislativo. Mas quem merece a ameaça armada de 240 agentes é Eliana Tranchesi, presa em sua “mansão”. Vamos invadir o Palácio de Inverno dos ricos, expropriá-los, comê-los, satanizá-los, fuzilá-los. A menos que colaborem.
Dêem um copo de sangue aos canibais. Eles estão com sede. Márcio Thomaz Bastos, de fato, está sendo exemplar. Nunca um ministro colaborou tanto com um projeto de poder. Ninguém, como ele, consegue transgredir os limites do Estado de Direito, embora a sua ação mimetize o cumprimento de todas as suas regras. É seu mais fino e delicado operador. Chávez conta com a sua pantomima de Guarda Vermelha, os seus bolivarianos armados. O ministro da Justiça está armando a sua tropa de elite da Polícia Federal. É como se dissesse, em tom de desafio: “Vocês não reclamam da impunidade? Então, tomem!”. Reitero: se Eliana Tranchesi errou, que pague pelo seu erro. Mas será ela a merecer a companhia de agentes armados? Faz-se aqui o que Putin faz na Rússia com os seus adversários políticos, a exemplo do dono da Yukus. Arruma-se o pretexto legal para a prisão, escondendo os seus reais motivos. Democracias lidam com motivos. Ditaduras lidam com pretextos.
Os canibais fiquem certos. Não me arrependo de uma miserável linha do texto que escrevi em defesa da Daslu ainda que Eliana seja culpada de tudo de que a acusam. Eu o assino de novo. Porque suas eventuais transgressões não diluem a névoa de ressentimento e canalhice invejosa que cobriu a inauguração de sua loja. Os que a hostilizavam não o faziam porque ela sonegava, mas porque a queriam responsável pelas misérias do Brasil. A nova Daslu, se não me engano, consumiu R$ 100 milhões em investimentos. Eliana trabalha há mais de duas décadas. Marcos Valério, sem produzir um parafuso ou vender uma gravata, movimentou R$ 1,5 bilhão em cinco anos. Mas o governo Lula, que começa para valer neste dia 13, já escolheu os bandidos do Brasil. Já decidiu quem vai para a cadeia e quem ajuda a governar o país.
Os canibais podem rosnar e soltar a sua baba vermelha. Não arredo pé.
PS: A Justiça acaba de determinar o fim do regime de isolamento, ou que nome tenha, para Fernandinho Beira Mar. É isso mesmo. Um bom país é aquele em que Eliana Tranchesi fique presa, e Beira Mar, mais solto. Estamos escolhendo o nosso futuro.
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