Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, julho 20, 2005

Editorial de O Globo Roteiro para Lula



Opresidente Luiz Inácio Lula da Silva errou duplamente na entrevista concedida em Paris, na sexta-feira, e levada ao ar no domingo pelo "Fantástico". Os dois equívocos gritantes se encontram em uma única frase: "O que o PT fez, do ponto de vista eleitoral, é o que é feito no Brasil sistematicamente."

Sem estabelecer qualquer hierarquia nos escorregões presidenciais, o primeiro problema no pensamento de Lula é conceitual. Se uma lei não é seguida — no caso, a legislação eleitoral — não importa quantos não a cumprem. Todos estarão na ilegalidade da mesma forma. Se o PT e todos os partidos têm caixa dois para financiar campanhas ou qualquer outra despesa, isso não serve de atenuante: as legendas, quantas forem, precisam ser investigadas e punidas como manda a legislação.

O segundo erro de Lula foi atrair a crise para as proximidades do seu gabinete, por fundamentar a suspeita de que conheceria previamente a estratégia de defesa do ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares e do publicitário, lobista e co-administrador do propinoduto petista Marcos Valério. Os dois, em entrevistas na sexta e no sábado, iriam admitir a existência do caixa dois no PT, explorando a mesma linha de argumentação de que nada fizeram de diferente em relação à prática da política brasileira — tese idêntica à defendida por Lula na entrevista feita nos jardins do Palácio Marigny, casa de hóspedes ilustres do governo francês. Tornou-se, então, no mínimo inevitável a suspeita de que o presidente estava informado da versão ensaiada entre Valério e Delúbio.

O presidente já havia cometido outros equívocos depois da eclosão da crise. Inicialmente, demorou a reagir, perdendo vinte e quatro horas preciosas após a primeira entrevista do deputado Roberto Jefferson, na ilusão de que tudo se resumia a uma disputa entre partidos da base do governo. Quando se movimentou, o fez na direção correta, declarando-se favorável à reforma política — embora esta tenha tomado, posteriormente, um rumo contrário ao que deseja a sociedade.

O presidente viria a entender, com acerto, ser inevitável o afastamento do ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu, alvejado de forma mortal pela crise detonada por Jefferson, e que hoje evolui com vida própria. Mas antes de começar a necessária despetização do primeiro escalão do governo, o presidente ainda se deixou levar, num discurso de improviso no interior de Goiás, pela tese temerária e fantasiosa, levantada por Dirceu, da existência de um complô da "direita" para desestabilizá-lo. Convenientemente, o mesmo discurso foi repetido pelo tesoureiro Delúbio Soares. E ainda sob a mesma influência dessa visão chavista, Lula abriu a sala de reuniões ministeriais para os chamados movimentos sociais, com direito a estandartes e bandeiras.

Mesmo a nomeação do presidente da CUT, Luiz Marinho, para o Ministério do Trabalho pode ser interpretada como uma tentativa do presidente de se cercar desses movimentos organizados para se defender.

Mas, como se tem dito no Congresso, por enquanto nada existe contra o presidente da República. Cuja maior defesa precisa ser o próprio ato de governar, sair da letargia. A crise política tem desvendado distorções que teriam de ser corrigidas pelo governo Lula, sem esperar o desfecho das investigações.

Haja o que houver, já é certo que como pano de fundo do escândalo dos mensalões e do caixa dois petista está o aparelhamento da máquina pública empreendido com furor pelo PT, em sociedade com partidos aliados, aos quais foi destinada uma cota de cargos nessa máquina. Há várias hipóteses sobre as fontes de abastecimento do caixa dois do PT. A dupla Delúbio-Valério quer fazer crer que o caixa foi abastecido apenas pelos tais financiamentos levantados por Valério para o PT. Ora, esses empréstimos, hoje, atualizados, somam R$ 90 milhões, cifra muito inferior às que trafegaram de forma ilícita pelas agências de Marcos Valério. Certamente a infiltração político-partidária do Estado é pista segura que levará a uma copiosa fonte de arrecadação de recursos à margem da lei para o PT e legendas aliadas.

Há propostas na mesa de Lula para cortar todos ou boa parte dos aproximadamente 20 mil cargos ditos de confiança — na verdade uma ampla e escancarada porta de entrada de interesses escusos na máquina do Estado. Também ficou evidente a desnecessária existência de estatais como o Instituto de Resseguros do Brasil, IRB, usado para a captação ilegal de contribuição a partidos, pelo menos para o PTB.

A melhor trincheira de defesa de Luiz Inácio Lula da Silva é tratar de desaparelhar o Estado, reduzir a obesa equipe de ministros, cortar gastos e deixar o PT penitenciar-se, sem interferir no processo de autocrítica da legenda — algo que os companheiros petistas, pela origem ideológica, devem estar aptos a fazer.

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