O Estado de S Paulo
O PT foi convocado a pagar a conta da crise e Lula virou refém de um artifício jurídico Ficou ruim para todo mundo - o governo como um todo, o PT em particular -, mas para o presidente Luiz Inácio da Silva ficou péssimo: até agora mantido razoavelmente à distância dos efeitos da crise, domingo à noite chamou a si o risco da responsabilidade.
Ao corroborar a versão dos acusados, Lula se expôs ao perigo de sentar com eles no banco dos réus quando, e se, surgir a primeira prova de que Marcos Valério de Souza e Delúbio Soares mentiram ao atribuírem a empréstimos bancários destinados ao caixa 2 das campanhas do PT o espetáculo da dinheirama à deriva ora em curso no País.
O presidente passou dois meses recusando-se a abordar com seriedade, transparência e consistência as denúncias de que seu governo e seu partido estavam envolvidos em peripécias altamente suspeitas.
Quando surgiu para falar do assunto o fez na mesma toada de Marcos Valério e Delúbio, integrando com eles uma seqüência de entrevistas bem armadas para produzir argumentos de defesa.
Na sexta-feira manifestou-se um, no sábado o outro e, no domingo, o presidente nem pôde esperar sua volta ao País para, como prometera, "falar sobre problemas internos, com muito prazer, no Brasil".
Falou na França mesmo, numa entrevista em tudo e por tudo esquisitíssima: não apenas pelo conteúdo, o súbito sentido de urgência, mas principalmente pelo formato de pronunciamento à Nação dado a uma TV francesa, enquanto estavam lá profissionais da imprensa brasileira; os enviados para acompanhar a viagem presidencial e os correspondentes.
É de se perguntar quem foi o gênio que teve a idéia de exibir o presidente da República como avalista de uma explicação inverossímil com o evidente propósito de tirar o governo do foco e desviar as atenções para o problema do financiamento das campanhas eleitorais.
Um bom tema, sem dúvida, mas para ser discutido logo após ficar perfeitamente esclarecido se houve ou não o uso dos instrumentos de Estado para financiar a expansão da máquina petista, as campanhas do partido e de seus aliados e a montagem e a manutenção da maioria parlamentar.
Com sua entrevista, o presidente conseguiu socializar um prejuízo até então ainda circunscrito a algumas dezenas de parlamentares, à cúpula afastada do PT e a uma dúzia de personagens e tratativas suspeitas envolvendo negócios com empresas estatais.
Agora está todo o PT devidamente posto como autor de um crime eleitoral.
Enlameou-se de vez o partido, coisa que nem Roberto Jefferson fez com o seu PTB. Ciente das penalidades da lei, sendo a mais grave a cassação do registro da legenda na Justiça Eleitoral, o deputado tratou de - para usar palavras dele - "matar no peito" a doação de R$ 4 milhões que diz ter recebido como "pessoa física" do PT.
Na ocasião, teve o cuidado de montar a mesma rede de proteção para José Genoino, dizendo que o então presidente do PT lhe entregara o dinheiro em condição semelhante. Mas Genoino recusou a bóia de salvação.
Preferiu a negativa em regra para ver-se, semanas depois, não só desmentido. Mas desqualificado pelo presidente Lula, como integrante de um grupo de maus dirigentes que comandaram o partido enquanto os "melhores quadros" foram para o governo.
Muito provavelmente hoje Genoino não tenha energia nem para reagir a tal desqualificação. Mas o partido País afora certamente reagirá, pois dificilmente aceitará pagar a conta de uma crise contratada por uma cúpula e suas ramificações.
Não são poucos os petistas que nestes 2 anos e meio se insurgiram contra algumas questões de forma explícita e calaram-se em relação a outras atinentes a suspeitas de natureza ética.
O desconhecimento vigente no coletivo sobre os negócios em curso diz bastante a respeito da demora e do atabalhoamento dos petistas na reação às primeiras denúncias.
Os otimistas acreditavam que eram falsas; os realistas não sabiam a extensão dos malfeitos e não se arriscavam a corroborar defesas sem o conhecimento perfeito das causas.
Tornou-se uma prática o governo e o PT sistematicamente reconhecerem seus erros políticos e estratégicos na mesma proporção de sua incapacidade em corrigi-los. A cada temporada de equívocos seguia-se uma breve autocrítica de efeitos logo anulados pela produção de novos e mais robustos desacertos.
Daí a seqüência de crises ter como marca registrada o fato de a próxima ser sempre pior que a anterior.
Acontece de novo e, desta vez, o presidente da República assumiu o papel de condutor pessoal da piora. Até a entrevista, a versão combinada entre Delúbio e Marcos Valério sempre podia ser recebida - como foi - com desconfiança e um certo repúdio por parte dos novos dirigentes do PT.
Inclusive para o caso de vir a ser desmentida.
A partir do aval oferecido pelo presidente, ficou impossível o recuo.
Tornaram-se todos reféns de uma explicação cujo artificialismo pode não resistir à força dos fatos. Neste caso, para não se configurar a consecução da mentira, Lula terá de alegar que disse qualquer coisa à falta de algo melhor para dizer.
Mas aí já terá sacrificado seu partido, seu governo e uma longa folha de serviços prestados à defesa da ética na política.
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