De que outra maneira interpretar, a não ser como confissão tácita de que o mensalão e tudo mais que têm vindo à tona no seu rastro existiram no mínimo até bem pouco, a seguinte passagem do improviso do presidente, com a sua característica sintaxe: "No meio do caminho, sempre alguém pode cometer desvios, erros e desacertos. Isso acontece na nossa própria família, na vila em que a gente mora, na rua ou cidade"? Ou - passados dois dias do noticiário sobre negócios dos seus filhos com a Telemar - o fato de ele tomar a iniciativa de relatar aos 850 sindicalistas ligados à CUT, reunidos na sede do governo, que telefonou para Pelé para lhe dar apoio pelo transe que vem vivendo desde que o seu filho Edinho foi preso por tráfico de drogas?
Tudo isso para afirmar - depois de ouvir ominosos discursos que o comparavam ao presidente venezuelano Hugo Chávez e criticavam o "espetáculo de denuncismo" (palavras do cutista João Felício, na contramão da própria linha oficial do Planalto e do PT) - que "o bom exemplo vem de dentro de casa". Logo, "se alguém cometeu erro no partido, tem de pagar". Que o "erro" foi cometido, disso não tem dúvida o ex-ministro Tarso Genro, incumbido por Lula, ou com o seu integral endosso, de devassar a gestão que o precedeu na agremiação e tentar devolver-lhe a honra que os seus próprios quadros dirigentes se encarregaram de esfarinhar. Para Tarso, "o PT vive a pior crise da sua história", uma "crise de coerência moral do partido, com a sua base e a sua militância, devastadora".
A sua origem estaria na insuficiência, dentro da legenda, de controles que impediriam que a corrupção sistêmica brasileira pudesse engolfar "parte dos quadros de qualquer partido que chegou ao Estado". É o mais perto que Tarso se permitiu chegar da admissão de que o PT no poder mergulhou na corrupção. Onde isso deixa o presidente, o seu partido e o País? Lula continua a dar sinais de não saber o que significa a função para a qual foi eleito. Foi assim no mês passado quando comandou um simulacro de reunião ministerial, dando assento à grande mesa que serve para tal a representantes dos "movimentos populares", encabeçada por João Pedro Stédile, que vieram hipotecar-lhe solidariedade diante do "golpe em marcha das elites".
Foi assim quando interferiu - como presidente da República, ostensivamente, e não como figura maior do seu partido - para tentar resolver a crise moral petista. E foi assim quando transformou o bem público que é o palácio presidencial em auditório da CUT, dias depois de nomear ministro do Trabalho o seu presidente Luiz Marinho. Estará o criador do "novo sindicalismo" querendo ressuscitar o "peleguismo"?
A única circunstância atenuante para o desnorteamento de Lula está em que, assim como o PT e o Brasil, também ele sofre os efeitos do "imenso suspense no ar" de que fala o professor de direito Miguel Reale Júnior em artigo publicado ontem no jornal Valor. É um texto inquietante pela consistência dos seus argumentos. "A sensação é de que a qualquer momento possamos ser atingidos por um furacão", descreve o ex-ministro da Justiça.
O furacão, naturalmente, é a hipótese de ficar demonstrado que o presidente tinha conhecimento do que estava na raiz das relações promíscuas do notório Marcos Valério com a alta burocracia do PT e ocupantes do Planalto: "Ao se juntar os rastros", conclui Reale o seu brilhante raciocínio, "o todo formado univocamente leva à conclusão de fato não diretamente conhecido: o mensalão como estratégia para (o governo) ter maioria na Câmara sem compartilhar poder." Esse é o nervo exposto da crise.
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