Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 16, 2005

Carregando dólares na carteira por Otaviano Canuto*

O Estado de S Paulo

Do ano passado para cá, o dólar valorizou-se em torno de 10% em relação tanto ao euro quanto a uma cesta de moedas ponderada de acordo com o peso dos países no comércio exterior dos EUA. Para muitos analistas, contudo, continuam válidos os argumentos apontando a desvalorização daquela moeda como inevitável, e deverá ser curto o fôlego dessa inversão na trajetória de declínio do dólar que vigorou nos últimos três anos.

Afinal, o déficit em conta corrente dos EUA continuou batendo recordes no primeiro trimestre, alcançando 6% do PIB nos 12 meses até abril. O crescimento econômico norte-americano permanece firme, enquanto no resto do mundo vem mostrando desaceleração. É pouco provável, portanto, que as exportações dos EUA aumentem a um ritmo duas vezes maior que as importações, o que seria o requisito para a estabilização do déficit em conta corrente no futuro próximo.

Outro fator na direção para baixo do dólar seria a diversificação de reservas por bancos centrais em favor de ativos denominados em outras moedas. Entre o último trimestre do ano passado e o primeiro de 2005, o montante anualizado de compras oficiais externas de ativos norte-americanos caiu de US$ 377 bilhões para US$ 98 bilhões. Os bancos centrais estrangeiros compraram US$ 68 bilhões de títulos do Tesouro a menos, ao mesmo tempo liquidando US$ 60 bilhões em outros ativos.

Na verdade, a complexidade e a magnitude da dinâmica de inversões financeiras privadas, num contexto de abundante liquidez e plena integração internacional, complicam qualquer cenário de aposta unilateral na queda do dólar. A valorização recente do dólar é explicável por uma elevação acentuada nas compras de títulos norte-americanos pelo setor privado externo. As compras privadas de títulos do Tesouro (US$ 300 bilhões) por estrangeiros preencheram a lacuna deixada pelos compradores públicos, compensando também a continuidade de fluxos líquidos negativos no investimento direto e na aquisição de ações.

Na altura atual do processo - provavelmente ainda inconcluso - de ajuste da taxa básica de juros dos EUA, esta já oferece um diferencial positivo de 150 pontos básicos em relação à taxa da zona do euro. As diferenças de vitalidade entre as duas economias reforçam a perspectiva de que a atratividade relativa dos ativos norte-americanos tende a aumentar no futuro próximo, sem que necessariamente o diferencial de rentabilidade prospectiva seja erodido por expectativas de desvalorização do dólar em relação ao euro. É possível assistir-se a um novo ciclo de uso massivo da liquidez européia para financiar o carregamento em carteira ("carry-trade") de títulos dos EUA, mesmo que não atinja o tamanho daquele da segunda metade dos anos 90.

Pode ser surpreendente para alguns, mas a possibilidade de valorização do dólar também pode vir por sua relação bilateral com a moeda chinesa. Basta observar as conseqüências de continuarem fracassando as estratégias especulativas de carregamento de ativos em carteira que, apesar dos controles de capital chineses, foram montadas para ganhar com o que parecia uma aposta unilateral inexorável, a saber, a valorização cambial chinesa. Um método relativamente simples, por exemplo, foi comprar títulos negociáveis de propriedade imobiliária na China e financiá-los com hipotecas denominadas em dólar.

O enorme aumento de reservas oficiais chinesas de dólar, nos últimos tempos, foi em parte resultado de tal especulação cambial, indo além dos saldos em conta corrente e do ingresso de investimentos diretos. Ora, suponha que o Banco Central chinês tenha diversificado suas reservas e reduzido sua exposição ao dólar, bem como, mantida a resistência chinesa à flexibilização de seu regime cambial, comecem a ser desmontadas aquelas posições especulativas de carregamento de ativos. Neste caso, o Banco Central chinês ver-se-ia obrigado a vender euros para devolver os dólares.

Conclusão: mesmo sendo alta a probabilidade de que os déficits em conta corrente norte-americanos se manterão em rota insustentável, no futuro próximo, não se depreende qualquer inexorabilidade de queda no dólar ou de forte elevação de juros norte-americanos para evitar tal desvalorização.
*Otaviano Canuto, diretor-executivo no Banco Mundial

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