Entrevista:O Estado inteligente

domingo, julho 10, 2005

AUGUSTO NUNES : A síndrome de São Bernardo

jb

Delúbio Soares abriu no interior de Goiás a semana de lágrimas. Seguiu-se o choro de José Genoino no programa Roda Viva, convenientemente derramado na última resposta. Chorou depois o deputado Bispo Rodrigues, que subiu ao céu passando sacolinhas e desceu ao inferno repassando mensalões. Marcos Valério tentou chorar na CPI. Não conseguiu ir além da voz embargada. Nem chegaria a isso se o indispensável senador Pedro Simon fosse integrante da CPI. O bravo gaúcho esperou oito horas para transmitir a Valério o recado do Brasil: ''Você pensa que está lidando com um bando de palhaços?''.

Chorão vocacional, Lula desta vez só ficou triste. Deve ter esgotado o estoque de lágrimas reservado ao caso no dia em que ouviu de Roberto Jefferson a história do mensalão. Sem disposição para examinar de perto o tamanho do pântano, decolou rumo à Escócia, ansioso por representar os pobres na reunião dos ricos. A viagem foi tão curta que até a primeira-passageira preferiu ficar por aqui. O presidente embarcou calado no Aerolula. Na Escócia, pouco falou. E regressou em silêncio.

Tomara que o passeio tenha ajudado Lula a superar a tristeza e recuperar, de imediato, a energia necessária ao presidente de um país em crise. O Brasil está cansado de empurrar o chefe de governo para longe da lama, e logo vê-lo de volta às manobras destinadas ao resgate de companheiros afundados no lodaçal. Depois da primeira e frustrante entrevista coletiva, Lula parou de falar a jornalistas. Só faz discursos, berrando promessas que não pretende cumprir. A lama já chegou aos corredores do Planalto. O presidente só enxerga lagos.

O homem que jura punir quaisquer corruptos é o mesmo que procura impedir a criação de uma CPI de verdade para tratar do mensalão. Talvez se comova com a choradeira dos culpados, que não merecem pena nem perdão. Se continuar assim, acabará dissolvido pelo pranto convulsivo. E o país não o consolará com lágrimas solidárias. Será tratado como cúmplice.

Os chorões da semana não se arrependem do que fizeram e fazem a uma nação estarrecida pela roubalheira endêmica. Choram para livrar-se do castigo, para lastimar a perda do emprego, da mesada, do poder. Choram por eles, nunca por nós. A tropa de choque do PT não deterá o avanço das CPIs. O presidente não conterá as investigações policiais. É bom que nem tente. Lula que trate de salvar a alma do próprio governo e, se sobrar tempo, devolver o PT ao bom caminho.

Muitos casos de seqüestro registraram um fenômeno hoje conhecido como ''síndrome de Estocolmo''. Aterrorizadas pela força dos captores, com a mente e o corpo alquebrados, numerosas vítimas se tornam de tal forma dependentes dos carrascos que acabam apaixonadas por eles. Induzidos a conviver com as elites que prometiam implodir, comandantes do PT descobriram os caminhos do dinheiro. Gostaram dos prazeres que a fortuna proporciona. Preferiram um Marcos Valério a metalúrgicos nostálgicos do tempo das grandes greves no ABC. E trataram de enriquecer.

É um fenômeno semelhante ao que afeta seqüestrados. Os petistas gatunos sucumbiram à ''síndrome de São Bernardo''.

A festa junina de julho, promovida na Granja do Torto por exigência da primeira-dama, reavivou a memória do Cabôco Perguntadô. Sempre animada, a mulher de Lula não se ofenderá com a reprise de antigas interrogações. O Cabôco quer saber: já doou ao Fome Zero aquelas jóias que ganhou na viagem aos Emirados Árabes? Vai devolver o presentão só no fim do mandato do marido? Ou resolveu levar tudo para casa?

Pegou mal, capitão

Ao cair do Planalto, o capitão Dirceu prometeu agitar a planície. Sairia pelas ruas do Brasil, à frente de militantes de todos os movimentos sociais, para defender o governo Lula das "elites golpistas". Como o comandante permanece em Brasília, tramando a guerra no cafezinho da Câmara dos Deputados, o Movimento Urbano dos Sem Teto resolveu dar a largada por conta própria. Informados de que deveriam promover manifestações de protesto contra quem anda enriquecendo com golpes e negociatas, e sem tempo de pedir mais detalhes ao capitão, centenas de irados militantes sitiaram a sede do PT em São Paulo. Ou o grande estrategista orienta a tropa direito ou acaba derrubando o governo.

Mensalão em Itaboraí

Durante seis meses, Cosme José Salles, 48 anos, foi o prefeito mais bem pago do Brasil. Eleito em outubro passado para atacar as muitas carências de Itaboraí, a 40 quilômetros do Rio, o candidato do PT primeiro atacou os cofres públicos. Às vésperas da posse, vereadores amigos decidiram que o salário do prefeito seria sempre equivalente a 0,5% da arrecadação municipal. Aparentemente modesta, a porcentagem rendeu a Salles R$ 30 mil a cada 30 dias. Um mensalão.

O assalto legalizado causou perplexidade e indignação entre os habitantes de Itaboraí. A rede de esgotos alcança só 30% da população. Quase 90% das ruas continuam à espera do asfalto. Como pagar ao prefeito uma quantia amplamente superior aos ganhos do presidente da República? Salles achou sensato viajar para o Pantanal. Ficou dez dias pescando. Ao voltar na terça-feira, informou que vai baixar o salário para R$ 15 mil. Acha que merece. Merece é cassação, depois de devolver o que tungou.

Cinismo campeão

Criado para premiar frases indecifráveis, cretinas ou sem pé nem cabeça, o Yolhesman passa a abranger pérolas de cinismo. A mudança decorre do desempenho de Marcos Valério, o famoso ''Carequinha de Minas'', na CPI. Levou a taça esta:

''Se tivesse tanto poder, seria ministro sem pasta.''

O governo petista não cometeria a injustiça de tirar até a pasta de quem esbanjou eficácia no Ministério da Mala.

A juíza ainda não vira tudo

A juíza Denise Frossard, decente e corajosa, botou na cadeia os grandes bicheiros do Rio depois de apurados os crimes praticados pela turma. Os chefões passaram anos na prisão. Denise sofreu muitas ameaças, não se assustou. Eleita deputada federal, trocou o Judiciário pelo Legislativo convencida de que, em matéria de delinqüência, nada mais poderia surpreendê-la.

Errou. Ao ouvir de Roberto Jefferson a descrição das aberrantes barganhas entre o Parlamento e o Planalto, a deputada assustou-se. ''Mas essas coisas sempre funcionaram assim?'', perguntou. Sim, confirmou Jefferson. A ex-juíza deve estar achando que, comparado a certos colegas, os bicheiros que prendeu são gente fina.

Missão em Kiribati

O sonho foi desfeito pelo veto americano: tão cedo não haverá lugar para o Brasil no Conselho de Segurança da ONU. Enquanto durou, combatentes espalhados pelo Itamaraty por todo o planeta esbanjaram persistência e inventividade (além de muito dinheiro com passagens e hotéis). A ampliação das frentes de batalha conduziu a descobertas fascinantes. Sabe-se agora, por exemplo, que Kiribati existe.

A façanha geopolítica deve ser creditada a Arnaldo Carrilho, cônsul-geral do Brasil em Sidney, Austrália. Designado para a conquista da Oceania, lutou por votos em mares nunca antes navegados por diplomatas nativos. No fim de maio, brilhou na batalha de Kiribati, conjunto de atóis com 103 mil habitantes.

O país não tem moeda própria (usa o dólar australiano). O PNB é de US$ 38 milhões (cifra anedótica para um Marcos Valério). Não tem sequer representação permanente na ONU. Mas tem direito a voto. E voto na ONU não tem preço. Merece o esforço relatado por Carrilho no telegrama enviado ao Itamaraty em 3 de junho. São 1.771 palavras, distribuídas por 14 tópicos.

O estilo funde linguagem de espião, derramamentos barrocos, informações delirantes e descrições grávidas de minúcias. ''Fui recebido pelo presidente da República de Kiribati (na pronúncia local, se diz 'kiribass')'', decola a mensagem, depois da introdução em diplomatês. Antes de chegar ao presidente Anote Tong, passou pelo gabinete do secretário de Negócios Estrangeiros e Imigração, Taam Biribo. O entusiasmo começou ali.

''Biribo me convidou para almoçar na parte mais bela e pitoresca do atol, Bétio (em nossa prosódia, 'Besso')'', anima-se. (Do almoço participaria uma alta funcionária do governo que, além de usar brasileiríssimas sandálias havaianas - ''das legítimas'', frisa Carrilho -, chamou-o de lado para dizer, em inglês, que achara o visitante muito bonito.)

A conversa com o presidente ampliou o entusiasmo de Carrilho. ''Tong é homem culto e preparado, originário do leste de um país com 33 atóis que se espalham pelos quatro hemisférios e é dividido pela linha internacional da data'', avisa. ''Isso quer dizer que nasceu um dia antes daquele do atol de Taraua, a capital. Graças à formação cultural de Tong, aperfeiçoada na Nova Zelândia e na Grã-Bretanha, pudemos manter diálogo de alto nível. Houve inclusive citação a Marx, algo que se tornou corriqueiro entre não-marxistas.''

De Marx, os conversadores passaram a clássicos do cinema que passeiam pela região, ''tais como filmes de Murnau (Aurora e Tabu) e Sternberg (A saga de Anatahan), desvinculados de estereotipias folclorizantes e paternalistas à maneira hollywoodiana''. Trataram até de questões diplomáticas. O presidente prometeu ler com atenção a carta enviada por Lula.

Carrilho sugeriu o estabelecimento de relações diplomáticas entre as duas nações. Biribo explicou que, se sobra vontade, falta gente. A versão kiribatiana do Itamaraty tem 12 funcionários e uma única embaixada, nas Ilhas Fiji. E o apoio ao Brasil na ONU?

Tong ficou de pensar.

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