Entrevista:O Estado inteligente

sábado, junho 21, 2008

VEJA Entrevista: Michael Klein


A classe C no paraíso

O dono da maior rede de lojas do país fala dos sonhos de consumo dos brasileiros de baixa renda e diz: eles adoram produtos de marca


Monica Weinberg

Lailson Santos

"Não existe mais no Brasil
aquela classe C a quem se
podia vender um produto
ordinário que ela comprava"

Pouca gente entende tão bem dos gostos e hábitos da classe C brasileira quanto o empresário Michael Klein, 57 anos. Ele aprendeu o que sabe nas Casas Bahia, empresa onde trabalha desde os 18 anos e que comanda há três. Trata-se da primeira rede de varejo no Brasil a mirar sobretudo a classe C, ainda na década de 50. No ano passado, as lojas de Michael faturaram 13 bilhões de reais, mais do que todos os concorrentes juntos. Por seu sucesso, a fórmula para vender aos estratos de renda mais baixos, aplicada na rede de 560 lojas esparramadas em dez estados, tornou-se objeto de estudo nas melhores escolas de negócios do mundo, entre elas a da Universidade Harvard. Boa parte das estratégias foi concebida por seu pai, Samuel Klein, hoje com 85 anos, que deixou a Alemanha no pós-guerra juntamente com Michael, então com 1 ano. Depois de trabalhar como mascate, Samuel abriu a primeira de suas lojas em São Caetano do Sul, onde fica o escritório do filho. Não é tão fácil encontrar Michael por lá. Dia sim, dia não, ele visita uma loja diferente. Casado pela segunda vez e pai de dois filhos, Michael deu a VEJA a seguinte entrevista.

Veja – A nova classe C é muito diferente daquela que freqüentava as lojas cinqüenta anos atrás?
Klein – Sem dúvida. Uma diferença fundamental diz respeito à primeira pergunta feita pelo cliente ao entrar na loja. No passado, ela era sempre a mesma: "Moço, o que vocês têm de mais barato aí?". O preço era o que, de longe, mais definia a compra, ainda que o produto em questão fosse de baixa qualidade. Hoje, as pessoas não só ambicionam comprar uma TV maior ou uma geladeira nova como querem uma boa marca – e já conhecem todas. Isso tem evidente relação com a expansão do crédito, que lhes permite gastar mais, mas também se deve a uma mudança fundamental na classe C: ela está muito mais informada e instruída. Na década de 60, havia 40% de analfabetos no Brasil. O número caiu para 10%. Essas pessoas, naturalmente, se tornaram mais exigentes. Não é mais aquela classe C a quem podíamos oferecer o produto mais ordinário que ela comprava.

Veja – Que tipo de artigo costumava atrair a classe C e hoje deixou de fazer sucesso?
Klein – Além de caçar pechinchas, outro padrão do passado era optar pelo produto maior e mais vistoso. As pessoas levavam para casa caixas de som gigantescas achando que tamanho conferia status e significava qualidade, quando era justamente o contrário. De um colchão, elas queriam saber apenas da espessura: era a filosofia do quanto mais alto melhor. Não se importavam se ele era ortopédico ou se tinha boa espuma. Hoje, fogem desses produtos e se pautam por critérios bem mais objetivos na hora de tomar uma decisão. Surpreende o grau de sofisticação das variáveis que elas pesam no momento da compra. A questão ambiental, por exemplo, começou a preocupar a classe C no Brasil. É comum que perguntem: "Vem cá, que tipo de gás essa geladeira libera?". A lição que se extrai disso é simples – e só quem a entende vai conseguir vender para gente de baixa renda: esses brasileiros já almejam o melhor.

Veja – Diante desse cenário, que adaptações o senhor precisou fazer em seu negócio?
Klein – Decidi inverter a lógica nas prateleiras. Trinta anos atrás, apenas 20% dos produtos tinham uma boa marca. Hoje é o contrário. Ao longo do tempo, vender móveis e eletrônicos de baixa qualidade à classe C demonstrou ser um mau negócio por uma razão bem prática: os produtos quebravam enquanto as pessoas ainda não haviam quitado suas prestações – e elas desistiam de continuar a pagar a dívida na mesma hora. Quando perguntadas sobre a motivação para o calote, afirmavam coisas do tipo: "Se esse som não toca nada, não vou pagar por ele". Com a experiência, aprendi que vender artigos ruins só faz aumentar a inadimplência.

Veja – O que explica o fato de as taxas de inadimplência serem menores nas faixas de renda mais baixas do que nas classes A e B?
Klein – Isso se deve, basicamente, a uma necessidade das pessoas de classe C de preservar o nome limpo. Sem isso, elas não conseguem contrair novos empréstimos nem arranjar emprego. Afinal de contas, ninguém quer contratar um mau pagador. Já nos estratos de renda mais altos, a história é outra. Trata-se de pessoas para as quais, por ter patrimônio e alguma renda, o acesso ao crédito não é tão definidor. O pensamento típico delas é: "Como estou vivendo bem, limpo meu nome quando der". Elas não têm o senso de urgência. Já para os consumidores de classe C, o nome é praticamente tudo o que têm, daí a maior propensão para saldarem suas dívidas. Não é por outra razão que as taxas de inadimplência no crediário, forma de pagamento preferencial das faixas de renda mais baixas, giram em torno de 10% – cerca de metade daquela registrada em cartões de crédito e cheques especiais, usados sobretudo pelas classes A e B.

Veja – Como evitar os maus pagadores?
Klein – Muita gente ainda acha que se resolve o problema negando crédito a quem não tem como comprovar renda. Isso espanta todos os brasileiros que trabalham na informalidade – metade da população ativa – e não se vai à raiz da questão. O fato é que, com ou sem comprovante de renda, essas pessoas não vivem com muito dinheiro e precisam ser assessoradas na hora da compra para não gastar mais do que têm. Não adianta empurrar uma TV de plasma para alguém que ganha dois salários mínimos por mês. Por essa razão, os vendedores nesse meio devem funcionar como uma espécie de consultor. É deles a missão de chamar a atenção para a prateleira certa, aquela em que estão dispostos produtos compatíveis com o orçamento de cada cliente. Essa é, sem dúvida, uma técnica eficaz para diminuir a inadimplência. A outra diz respeito à entrevista que precede a aprovação do crédito, peça-chave num negócio como esse.

Veja – Como, numa entrevista, é possível distinguir um bom de um mau pagador?
Klein – Mesmo o comerciante mais amador já sabe: cliente que mente tem menos probabilidade de pagar. Esse aprendizado tão elementar no varejo deve estar na base de qualquer entrevista para concessão de crédito. A que fazemos nas lojas é justamente para flagrar as pessoas numa eventual mentira. As perguntas chamam a atenção pela trivialidade. Indagamos a alguém que se apresenta como pintor, por exemplo, quantos galões de tinta são necessários para cobrir uma parede. Se ele demonstrar total ignorância em relação ao assunto, temos um problema. Esse tipo de entrevista não dura mais de dez minutos. O importante é ter funcionários treinados para rastrear os mentirosos. Com isso, reduzem-se os riscos de inadimplência – e é possível conceder crédito a quem não tem como comprovar renda. No nosso caso, essas pessoas já respondem por dois terços das vendas.

Veja – O que a classe C mais compra?
Klein – O item mais vendido nas lojas é o celular. Foram 3,6 milhões de aparelhos só no ano passado. As pesquisas mostram que muita gente de classe C compra celular porque a rede fixa ainda não chegou aos lugares em que vive, seja nas zonas rurais, seja na periferia de grandes cidades. Curiosamente, essas pessoas sujeitas a condições de moradia tão precárias não procuram um modelo simples. Querem, ao contrário disso, um celular com câmera. É um claro contraste em relação à classe C do passado. No Brasil dos anos 50, o grande hit eram os colchões de espuma. O sonho das pessoas era se livrar de seus velhos modelos à base de palha ou daqueles de molas barulhentas. Muitas entravam na loja se queixando de dor nas costas. As mudanças de lá para cá são, também, um sinal de como o país evoluiu.

Veja – O que jamais muda no padrão de consumo das faixas de renda mais baixas?
Klein – A atração por móveis de verniz sobreviveu intacta às décadas. Bote brilho num armário e ele venderá como água. Ao pesquisar as razões disso, cheguei a uma conclusão interessante: além de "embelezar", essas pessoas atribuem ao verniz um efeito de limpeza, algo que prezam acima de tudo. Também amam portas espelhadas. Passamos a vender muito mais desde que tomamos a decisão de trocar enfeites por espelhos nos armários. Eles fazem tanto sucesso porque conferem amplitude às casas populares, nas quais os cômodos são cada vez mais espremidos. Espelhos e móveis envernizados também dão certa sensação de status, tanto quanto a cozinha planejada. Ela lembra a da classe A. O que muda é o material.

Veja – Para seu negócio, quais são os efeitos da expansão acelerada da classe C?
Klein – Aparecem nas lojas 3 milhões de novos clientes por ano desde 2003, o que não é pouco. Por outro lado, há mais gente no Brasil mirando a classe C – pessoas que, antes, não viam muito atrativo nesse público. A concorrência, portanto, aumentou. Mas é preciso ressaltar que ela melhorou de nível. Digo isso porque no setor em que atuo predominava a informalidade. Ele era tomado por pequenos comerciantes que conseguiam oferecer preços mais baixos por causa da sonegação de impostos. Essa não é uma prática totalmente extinta no setor, mas a situação avançou muito depois do surgimento de outras redes de varejo, com as quais passamos a competir em igualdade de condições.

Veja – Vocês estão perdendo mercado para algumas delas?
Klein – A guerra pela classe C nunca esteve tão acirrada e, evidentemente, gente que poderia estar comprando nas minhas lojas acaba na concorrência. Outra questão é que os brasileiros de renda mais baixa estão às voltas com muitos sonhos de consumo, entre eles o de comprar a casa própria. A competição que enfrento hoje, portanto, não é apenas entre lojas populares de móveis ou eletrodomésticos. O interessante em negócios como o meu, no entanto, é que eles acabam se beneficiando mesmo quando as pessoas preferem investir na compra de uma casa. Será uma questão de tempo para que apareçam nas lojas à procura de novos eletrodomésticos. Num país que cresce, o mercado só estica.

Veja – O PIB do Nordeste cresce a um ritmo duas vezes maior que a média brasileira – e algumas redes de varejo começam a se beneficiar disso. É um erro não estar lá?
Klein – Nunca tive lojas no Nordeste por causa de uma conta simples: os custos com a logística para fazer entregas a 2 000 quilômetros de distância dos nossos fornecedores não compensariam o fato de os nordestinos gastarem no varejo, ainda hoje, a metade do que gastam as pessoas no Sul ou no Sudeste. O faturamento não justificaria o investimento. Essa é a situação atual, mas ela está mudando rapidamente. Com taxas de crescimento tão altas, posso afirmar: será uma questão de tempo chegarmos ao Nordeste.

Veja – O senhor está preocupado com a inflação?
Klein – Sem dúvida. Ela é um freio de mão. Basta dizer que, quando crescia na casa dos dois dígitos, tínhamos 150 lojas. Com a inflação controlada, esse número quadruplicou. Em três meses de Plano Real, passamos a vender sete vezes mais. Algo parecido se passou no restante do varejo. O fenômeno tem relação direta com o que aconteceu na vida das pessoas: a inflação deixou de lhes corroer o salário e começou a sobrar mais dinheiro no fim do mês. O impulso para comprar veio ainda de outro efeito positivo do fim da inflação: o valor das prestações diminuiu. Divido a história de meu negócio em antes e depois dela. Todos os empresários brasileiros tiveram de se profissionalizar para sobreviver num ambiente sem inflação.

Veja – Por que o senhor diz isso?
Klein – A inflação maquiava os erros. Se um empresário negociava mal uma compra com os fornecedores, resolvia o problema aumentando o preço da mercadoria na loja. Todo mundo perdia. De um lado, eles vendiam menos. De outro, um número menor de pessoas tinha acesso a certos produtos. Minha convivência com empresários brasileiros mostra que só agora eles dão sinais de ter aprendido o básico: fazer uma análise objetiva de custos e conferir às mercadorias o valor correto.

Veja – Quarenta por cento de seu faturamento se deve aos financiamentos. O senhor não acha os juros cobrados em suas lojas extorsivos?
Klein – Não. Extorsão é coisa de agiota, que cobra 10% ao mês de juros por um empréstimo. Eu cobro 4%. Isso é alto? Em relação à média brasileira, não. Emprestar dinheiro no Brasil é, afinal, um bom negócio – caso contrário, não estaria nele. Mas a classe C também se beneficia disso: sem essa possibilidade, não estaria conseguindo comprar tanto.

Veja – Quais perspectivas o senhor vê para empresas como a sua no Brasil?
Klein – Nunca foi tão bom fazer negócio no país – e só melhora: as instituições funcionam, a economia é razoavelmente previsível e o PIB cresce. Não quer dizer que antigos problemas não continuem a atrapalhar, como o excesso de impostos e os altos encargos trabalhistas. No trabalho, incomoda-me ainda a sensação de insegurança que tenho ao visitar as lojas, o que faço dia sim, dia não. Tenho medo de ser vítima de assalto e seqüestro. Como medida preventiva, evito andar em carros caros demais. Dependendo do lugar, escolho até um modelo com proteção antifuzil. É bem raro sair de casa sem a escolta de seguranças. Às vezes, ando com seis deles. Pode parecer exagero de rico, mas circulo muito e não quero correr riscos.

Veja – Seus amigos freqüentam as lojas?
Klein – Já tiveram preconceito. Hoje, fazem uma pesquisa de preço e, caso o nosso seja menor, vão lá e compram. Eles querem ser recebidos com tapete vermelho, mas estão longe de ser os únicos. É exatamente essa a expectativa da nova classe C.

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