Entrevista:O Estado inteligente

sábado, junho 14, 2008

Traição, de Ronaldo Vainfas

As aventuras do traidor
Manoel de Moraes

As peripécias de um jesuíta que renegou sua religião,
serviu aos invasores holandeses e depois tentou fazer
o caminho de volta ensinam mais sobre o Brasil do
século XVII do que as grandes sínteses históricas


Mary del Priore

Museu Nacional de Belas Artes
Batalha dos Guararapes, quadro de Victor Meirelles sobre a invasão holandesa: emaranhado de deslealdades marcou o tempo dos flamengos no Brasil

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Trecho do livro

No fim da década de 80, nascia uma nova preocupação entre os historiadores. Recusando os paradigmas do marxismo ou do estruturalismo, eles preferiram se debruçar sobre a história dos indivíduos. Nada de estudar grupos sociais. Mas, sim, atores cujas marcas e sinais pudessem ser rastreados. Obtinha-se assim um relato mais claro das estratégias individuais e de suas relações com a sociedade. O efeito era como o de ampliar o foco de uma objetiva. Essa abordagem foi denominada micro-história. Apesar do alto nível das pesquisas feitas na universidade brasileira, faltava-nos um trabalho que desse carne e sangue a essa proposta. Ele nasceu da pena de Ronaldo Vainfas, professor titular de história na Universidade Federal Fluminense e grande especialista do período colonial. Autor de várias obras, profundo conhecedor dos documentos inquisitoriais, foi encontrar entre eles o personagem de seu novo livro, Traição (Companhia das Letras; 384 páginas; 47 reais). Seu nome: Manoel de Moraes, um padre jesuíta culpado por traições e heresias que o Santo Ofício quis esclarecer. O historiador retomou esse processo e desvendou, ao mesmo tempo, a complexidade de vidas submetidas a conflitos e guerras, ao trânsito entre o Velho e o Novo Mundo e às mediações culturais entre holandeses e portugueses, índios e negros.

Nascido provavelmente na última década do século XVI, em São Paulo, o jesuíta era mameluco e filho de bandeirante. Estudou na Casa de São Paulo em Piratininga e de lá foi enviado ao Colégio da Bahia. No Recôncavo, aprimorou a educação espiritual, adotando a carreira religiosa. Graças às suas grandes qualidades de missionário, foi mandado para uma das mais prósperas capitanias açucareiras do Brasil, Pernambuco, para atuar entre índios tabajaras e potiguaras. Logo se tornou superior da Companhia no aldeamento de São Miguel de Muçuí. Durante a invasão holandesa, Manoel integrou a linha de defesa erigida pelos jesuítas contra o avanço dos flamengos. Liderando tropas nativas, entre 1630 e 1634, lutou ao lado de Felipe Camarão e caiu prisioneiro dos holandeses na Paraíba. Em decorrência de seus feitos militares, conquistou, mais do que glórias, desafetos. Entre eles, os seus irmãos jesuítas e a oficialidade portuguesa. Sem recompensa, esse "capitão do gentio" resolveu não só se entregar aos batavos como lhes repassar preciosas informações sobre os territórios a ser conquistados. Tinha início uma nova fase de sua existência, em que ele passa "à seita de Calvino", renegando o catolicismo.

Não foi o único a trair. Segundo o autor, um emaranhado de cumplicidades e deslealdades marcou o tempo dos flamengos entre nós, sendo Calabar o exemplo mais conhecido. Na Holanda, Manoel se tornou funcionário da Companhia das Índias, além de ter se casado duas vezes. Como "o cesteiro que faz um cesto faz um cento", atraiçoou de novo. Mesmo vivendo bem entre os calvinistas, tornou ao catolicismo, assistindo à missa às escondidas. Enquanto isso, o Santo Ofício de Lisboa somava as denúncias apresentadas contra o antigo jesuíta. E foram muitas. "Queimado em estátua", em praça pública de Lisboa, seus problemas mais sérios tiveram início. Perseguido por ter se casado duas vezes com "heréticas", ora agradando às autoridades portuguesas, ora às holandesas, Manoel se enredou cada vez mais numa trama de equívocos que muito serviu aos seus detratores. Na verdade, tentava vender seus serviços a quem pagasse mais. Julgado pelo Tribunal do Santo Ofício, foi torturado e obrigado a sair num auto-de-fé. O pior foi ter os bens confiscados. Seu fim, ninguém sabe, ninguém viu. Expulso da história, entrou na literatura e virou personagem de vários romancistas.

Numa obra robusta, Ronaldo Vainfas sublinha suas excepcionais qualidades de pesquisador. Manuseando com habilidade processos e textos raros do século XVII, reconstitui, graças a toda sorte de indícios, o comportamento de um indivíduo. O resultado? Aprendemos mais com as peripécias de Manoel de Moraes do que nos ensinam as grandes, e por vezes maçantes, sínteses históricas.

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