Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, junho 05, 2008

Os dedos sujos da especulação

Rolf Kuntz*


Há uma China escondida, e muito mais, dentro dos computadores operados pelos novos especuladores dos mercados futuros de alimentos e de petróleo. Os americanos poderiam comer pão, massas e bolos durante dois anos com o trigo correspondente aos contratos acumulados pelos especuladores de índices, de acordo com as contas de Michael W. Masters, diretor e sócio da Masters Capital Management, uma empresa americana de hedge com sede nas Ilhas Virgens. Nos últimos cinco anos, a demanda chinesa de petróleo aumentou de 1,88 bilhão para 2,8 bilhões de barris anuais, com uma variação de 920 milhões de barris. No mesmo período, a demanda anual de petróleo daqueles mesmos especuladores cresceu 848 milhões de barris, quase empatando com a de uma economia gigantesca em crescimento explosivo. Os especuladores acumularam, por meio do mercado de futuros, um estoque de petróleo de 1,1 bilhão de barris, oito vezes o total adicionado em cinco anos à reserva estratégica dos Estados Unidos.

Estes são alguns dos números apresentados por Michael W. Masters no dia 20 de maio, em depoimento ao Comitê de Segurança Interna e Assuntos Governamentais do Senado americano. Em sua furiosa defesa do etanol brasileiro, em Roma, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva falou sobre dedos sujos de carvão e de petróleo, criticou os subsídios americanos ao etanol de milho e condenou a política agrícola do mundo rico. Poderia ter ido muito mais longe na tentativa de clarear o debate sobre a fome e a crise dos alimentos se tivesse apontado pelo menos um dedo para os grandes fundos institucionais, os mais poderosos participantes dos mercados financeiros e de produtos básicos.

Esses fundos eram conhecidos há vários anos como participantes de peso nos mercados de commodities. Sua atuação foi apontada, já no ano passado, como um dos fatores de alta dos preços do petróleo, dos alimentos e de outras matérias-primas, quando ficou evidente o efeito devastador dos aumentos de preços nos países pobres e importadores de comida. Mas a extensão de seu papel nunca havia sido mostrada de forma tão ampla e tão clara até o depoimento de Michael W. Masters no Senado americano.

Especuladores sempre existiram e por muito tempo foram considerados benéficos, porque proporcionavam liquidez aos mercados. Mas esses eram os de tipo tradicional. Há alguns anos, segundo Masters, o especulador de índices ainda tinha um peso limitado.

Isso mudou quando grandes instituições decidiram ampliar suas operações nos mercados de futuros de produtos básicos e, mais que isso, comprar e guardar contratos como se guardam ações e outros ativos financeiros. O especulador tradicional compra e vende. O de tipo novo acumula e, além disso, é menos sensível a preços unitários. Compra os volumes necessários para compor as carteiras desejadas e por isso é tão grande o seu impacto nos mercados de commodities, explicou Masters em seu depoimento.

Sua exposição está contida num documento com 18 páginas de textos, tabelas e gráficos. Quando se fala dos aumentos de preços de petróleo, metais e alimentos, lembrou Masters, em geral se buscam as causas na crescente demanda de economias emergentes, como a chinesa, e no uso de terras para a produção de etanol. Fala-se de inflação de demanda, mas a demanda mais importante não é a de produtos físicos.

Entre o fim de 2003 e março de 2008, os ativos aplicados nas estratégias de especulação com índices de commodities passaram de US$ 13 bilhões para US$ 260 bilhões, segundo um gráfico apresentado por Michael W. Masters. No mesmo período, os preços de 25 produtos componentes desse índice aumentaram em média 183%.

Uma das tabelas mostra a variação dos contratos acumulados pelos especuladores de índices nos últimos cinco anos. Os de café passaram de 195,7 milhões de bushels para 2,43 bilhões. Os de milho, de 242,6 milhões de bushels para 2,38 bilhões. Os de trigo, de 166,7 milhões de bushels para 1,13 bilhão. Os de óleo de soja, de 163,1 milhões de libras para 4,47 bilhões. Os de alumínio cresceram de 344,2 mil toneladas para 3,6 milhões. Muitos estoques de contratos foram multiplicados por dez ou mais vezes.

Não há, portanto, como falar em escassez física, embora a expansão da demanda nos grandes emergentes e algumas limitações de oferta possam ter pressionado as cotações. O desarranjo maior está noutra área - na mudança dos mercados de commodities e na sua sujeição, como indicou Masters, à especulação sem limites.

*Rolf Kuntz é jornalista

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