Entrevista:O Estado inteligente

sábado, junho 07, 2008

Obama, o candidato democrata

Obama entra para a história

A escolha do primeiro negro para concorrer à Presidência dos
Estados Unidos por um dos dois grandes partidos quebra um tabu
de séculos e manda ao mundo uma mensagem de tolerância. Em 
cinco meses se saberá se o país lhe dará a chave da Casa Branca


André Petry, de Nova York


M. Spencer Green/AP

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Nesta edição
• Os séculos americanos
Exclusivo on-line
• Conheça o pais: EUA

Quando era uma garota de 16 anos, Stanley Ann Dunham passava uns dias em Chicago, sem a vigilância dos pais, e resolveu assistir ao primeiro filme estrangeiro de sua vida. Era 1959. Orfeu Negro, do francês Marcel Camus, baseado na peça Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes, acabara de ser lançado. Os atores eram negros, o enredo se desenrolava durante o Carnaval no Rio, a trilha sonora era a gema da bossa nova – e Stanley Ann Dunham saiu do cinema flutuando. Fora a coisa mais linda que vira na vida até então, contaria anos mais tarde. No começo da década de 80, ela visitava seu filho em Nova York e soube que Orfeu Negroestava em cartaz. Convidou-o para assistir ao filme, mas, no meio da sessão, seu filho estava entediado com aqueles negros infantilizados na tela. Ele fez menção de sugerir à mãe para ir embora. Levou um susto. Iluminado pelo clarão azul da tela, o rosto de Ann exibia um olhar fascinado. Seu filho então compreendeu tudo.

Compreendeu que, no fim dos anos 50, sua mãe, uma menina branca do Kansas, no conservador e recatado Meio Oeste americano, amara aquilo tudo, amara aqueles negros exóticos num país tropical. Logo depois dessa experiência inesquecível, Stanley mudou-se com os pais para uma terra exótica, o Havaí. E, aos 18 anos, ela, "branca como leite", o encontraria, "negro como breu", numa aula de russo. Ela ficou grávida, casou-se – nessa ordem –, teve o filho e três anos mais tarde já estava separada. Seu filho, ali no cinema, agora compreendia que a trajetória da mãe talvez tenha se dado ao embalo dos sonhos daquela outra vida que o Kansas lhe negava. "Uma vida quente, sensual, exótica, diferente", escreveu o filho, em sua autobiografia. O filho, claro, é Barack Hussein Obama. Sua existência, portanto, talvez deva um fiapo de crédito à sonoridade dos versos que caíram no ouvido de sua mãe naquele cinema em Chicago, ela ainda na flor de seus 16 anos:

"A gente trabalha o ano inteiro
Por um momento de sonho
Pra fazer a fantasia
De rei, ou de pirata, ou de jardineira
Pra tudo se acabar na quarta-feira".

Mas nada se acabou na quarta-feira. Ao contrário. Na quarta-feira passada, 4 de junho de 2008, Barack Hussein Obama, 47 anos em agosto, acordou para viver seu primeiríssimo dia como o primeiríssimo negro na história dos Estados Unidos a virar candidato à Casa Branca por um partido grande e, portanto, com chance de ser eleito presidente do país. No dia anterior, quando a manhã começou a raiar em Chicago, faltavam 41 delegados para que ele vencesse a disputa. Os eleitores de dois estados, Dakota do Sul e Montana, estavam começando a se encaminhar às urnas para votar nas últimas primárias da temporada, e um superdelegado, como são chamados os caciques do partido que têm voto na manga, veio a público anunciar seu apoio a Obama. Depois, veio outro. E outro. E mais um. À tarde, faltavam apenas doze delegados. O número caiu para sete, cinco, quatro. Quando anoitecia, com os primeiros votos de Dakota do Sul e Montana entrando para o mapa eleitoral, a conta finalmente bateu em 2 118 delegados, e o quartel-general da campanha de Obama em Chicago veio abaixo. Gritos, aplausos, assovios, espocar de champanhe: Obama acabava de sagrar-se o primeiro negro a concorrer à Casa Branca com chance real de ser eleito. Extraordinário? Sem dúvida. Mas, diante da grandeza do feito, extraordinário é pouco.

Obama é o primeiro negro a chegar a essa posição depois de 389 anos do desembarque da leva inaugural de escravos africanos na América inglesa. É o primeiro a chegar lá quando os Estados Unidos vão celebrar no mês que vem 232 anos de vida independente – e democrática. É o primeiro decorridos 143 anos da Guerra Civil Americana, na qual 20 000 negros morreram como combatentes das forças da União. Mais: antes de obterem a posição de proeminência política da semana passada, os negros americanos passaram 250 anos sob a escravidão e outros 100 sob o regime de segregação racial, durante o qual eram proibidos de morar no mesmo bairro que os brancos, usar o mesmo banheiro público, ir à mesma escola. No início da década de 60, quando Ann se encantou com o jovem Barack Hussein Obama, então com 23 anos e recém-chegado do Quênia, os casamentos inter-raciais eram proibidos em pelo menos dezesseis estados. Em agosto de 1961, quando ela deu à luz o menino a quem chamaria pelo mesmo nome do pai queniano, a discriminação racial em empregos e lugares públicos não era apenas tolerada. Tinha amparo legal.

A vitória de Obama, por tudo isso, tem a moldura dos feitos que abrem uma nova era. Mesmo que já estivesse se desenhando há meses, sua conquista causou espanto, emoção, admiração, perplexidade. No Harlem, o bairro negro de Nova York, sua escolha foi recebida com eletricidade nas ruas. Atlanta, cidade que serviu de berço ao movimento que ceifou as leis racistas nos anos 60, ficou entre empolgada e incrédula. "Poucos acreditavam, mas enfim o dia chegou", espantou-se Christine King Farris, única irmã viva do lendário líder negro Martin Luther King, assassinado em 1968. "Nunca pensei que viveria para ver isso", disse um farmacêutico aposentado, Arthur Dees, 80 anos. Seu depoimento, publicado no jornal Los Angeles Times, dá a dimensão simbólica da mudança. Dees conta que esteve na posse do presidente Dwight Eisenhower em 1953, mas, sendo negro, não podia ir aos restaurantes ou hotéis do centro de Washington. "Eram todos segregados." É impressionante que um mesmo cidadão, como Arthur Dees, possa viver a trajetória que vai da proibição de um negro sentar-se à mesa de um restaurante à – quem sabe – eleição de um negro para sentar-se à mesa do Salão Oval da Casa Branca. E comandar o país que, apesar dos abalos atuais, é a maior potência da história (veja reportagem).


Fotos álbum de família e Doug Mills/The New York Times
AS ORIGENS DE OBAMA
Obama aparece em todas as fotos, em diversas fases de sua vida. Na década de 60, com o pai, queniano (no alto, à esq.); no colo da mãe, Ann, que morreu de câncer nos ovários e útero, em 1995 (no alto, à dir.); com sua mulher, Michelle, e as filhas, Malia e Sasha, em maio passado (no centro); com os avós maternos, na década de 80(acima)

Os olhos do planeta se voltaram para os Estados Unidos. Depois de quase oito anos da política arrogante do presidente George W. Bush, que fez uma guerra sozinho e virou as costas para os dilemas ambientais do mundo, a escolha de um negro, e um negro que passou parte da infância num país islâmico, soa como uma mensagem de tolerância. Tanto que foi recebida com aplausos pela direita e pela esquerda na França. Com elogios dos verdes e dos conservadores cristãos na Alemanha. Sem nenhuma surpresa, no entanto, foi recebida com apreensão no eternamente conflagrado Oriente Médio e com festa descontraída em Nyangoma Kogelo, o miserável vilarejo do Quênia onde mora Mama Sarah, a madrasta do pai de Obama. Sua candidatura, antes da vitória, já produzira interesse pelos recantos do planeta. "Quando estive nas montanhas do Equador, encontrei uma índia analfabeta que torcia por Obama", disse a VEJA o cientista político Rodolfo de la Garza, da Universidade Colúmbia. "Fiquei perplexo. Ela estava informada e se vinculou a ele pela cor da pele." De la Garza previu que Obama venceria Hillary Clinton. Agora, aposta: Obama ganha no dia 4 de novembro do republicano John McCain.

Até o começo do século passado, um negro jamais se sentara à mesa de jantar da Casa Branca. Em 1901, o presidente Theodore Roosevelt convidou para a ceia o ex-escravo e então professor Booker T. Washington. Provocou uma onda de protestos de racistas indignados. Agora, o anfitrião pode vir a ser um negro – na verdade, metade branco e metade negro, mas, para os padrões americanos, inteiramente negro. Um negro parido do sonho da jovem Ann, mulher de personalidade tão fascinante, misto de ingênua e libertária, quanto a do seu filho. No Brasil, caso não estivesse mirando em alguma cota, Obama se consideraria e seria considerado mulato. Mas será que o anfitrião da Casa Branca pode mesmo ser um negro depois de novembro? Obama já ganhou uma parada duríssima. Com 57 primárias em cinco meses, a campanha consistiu num desfile de recordes: foi a mais longa, a mais cara, a mais disputada e a mais participativa. Quase 40 milhões de americanos democratas votaram. Há um ano, derrotar Hillary não era mais que uma quimera. Com inteligência afiada, ambição desmedida, e mentirosa compulsiva, Hillary tem experiência e jogo de cintura. Senadora há oito anos, foi primeira-dama por outros oito. Junto com o marido, Bill, ela é (ou era) dona da máquina de captar dinheiro mais invejada de Washington e tem (ou tinha) ascendência sobre o Partido Democrata, atulhado de "clintonistas".

"Nesta noite, marcamos o fim de uma jornada histórica com o começo de outra – uma jornada que trará dias melhores para o país", disse Obama, na noite de terça-feira, quando se apresentou a uma empolgada massa de eleitores como o candidato democrata. A primeira jornada foi vencer os Clinton, e a segunda não será vencer McCain, mas tentar superar a barreira da raça. Uma pesquisa recente, publicada pela revista Newsweek, informa que 72% dos brancos e 75% dos negros acham que os Estados Unidos estão prontos para eleger um negro para a Presidência. Durante as eleições primárias, em levantamentos que indagaram aos eleitores se raça era um dado a ser ponderado na hora de votar, as respostas afirmativas nunca passavam de 30%. O dado é um bálsamo para os obamistas. Mas é preciso considerar que pesquisas sobre questões raciais são como pesquisas sobre sexo – muitos mentem. Na hora do voto, na solidão da cabine eleitoral, os preconceitos raciais podem aflorar. Os resultados das primárias em vários estados indicam que uma quantidade bem superior a 30% de eleitores pode estar olhando a cor da pele do candidato. No Mississippi, 91% dos negros escolheram Obama e 72% dos brancos votaram em Hillary. Estavam votando na cor da pele?


Fotos Julie Jacobson/AP e LM Otero/AP
UM JÁ FOI, FALTA O OUTRO 
Hillary Clinton, dona da máquina de arrecadar dinheiro e de prestígio decisivo entre os democratas, achava que sua candidatura era imbatível, mas foi atropelada por Obama, cujo alvo agora é o republicano John McCain (à dir.): o país está farto de Bush, de guerra, de crise – mas não de McCain

"Nossas pesquisas apontam que 94% dos negros votariam em Obama hoje", disse a VEJA o analista político David Bositis, do Joint Center for Political and Economic Studies. Mas, como os negros correspondem a um décimo do eleitorado, Obama jamais se apresentou como um candidato negro, sectarismo que ajudou o ativista Jesse Jackson a perder a indicação democrata em 1984 e 1988. Obama fez o contrário. Em Iowa, visitou igrejas de negros às escondidas. Na Filadélfia, evitou o distrito mais negro da cidade. Obama queria estar acima da questão racial. Com uma retórica incandescente, com sua fala gingada como um sermão de pastor, com uma linguagem que fala de hinos que cicatrizam a nação, ele não fazia uma campanha. Fazia um movimento. Não era um candidato. Era um transformador. Obama não tinha propostas. Tinha sonhos. Criou assim a obamamania. Aos poucos, os petardos da campanha lhe chamuscaram a aura mágica. O maior dano foi provocado por seu pastor, Jeremiah Wright, cuja igreja Obama freqüentou por vinte anos. O ex-pastor apareceu em vídeos fazendo discursos incendiários contra brancos e "contra a América". Obama rompeu com ele, depois rompeu com a própria igreja. Mas já não era mais o político pós-racial.

Sua trajetória extraordinária é simultaneamente dividendo e prejuízo perante os americanos. Fascina a uns, assusta a outros. Obama morou na Indonésia por três anos durante a infância, o que lhe deu contato com a diversidade, mas também serviu de plataforma de lançamento para os boatos de que é muçulmano. É tratado como negro, mas é muito mais caudatário de sua mãe branca e de seus avós brancos do que de seu pai negro, a quem encontrou poucas vezes. Isso tudo lhe dá uma experiência multirracial única, mas também leva parte da militância negra a achar que Obama não é um preto autêntico. Nem sequer partilha do passado comum da escravidão. O pai de Obama apenas viveu alguns anos nos EUA, teve um filho e voltou para o Quênia, onde morreu em um acidente de carro, em 1982. Seus antepassados, portanto, não são escravos ou ex-escravos. Tudo isso dá um frescor de novidade, mas também dá um arrepio de estranhamento. Por isso, acusa-se Obama de não pôr a mão no coração quando canta o hino, de não usar um broche da bandeira americana na lapela. Em outras palavras, acusam-no de não ser um bom americano.


POETINHA NA SUCESSÃO
Cena de Orfeu Negro, de 1959, a que a mãe de Obama assistiu, aos 16 anos, em Chicago: será que haveria Obama sem Vinicius?

Casado com Michelle, mulher de pulso firme e humor ferino, Obama tem duas filhas pequenas, Malia e Sasha, e sua casa fica em Chicago. Esteve por lá muito pouco no ano passado, engolfado por uma campanha exaustiva. Tem apetites moderados. Prefere uma xícara de chá orgânico a um copo de uísque. Troca um punhado de batatas fritas por um prato de frutas. Prefere salmão à carne vermelha. Para transportar-se mentalmente para fora da campanha, gosta de ler ficção – John Le Carré, Philip Roth. Na política, é um novato. Passou poucos anos como parlamentar em Illinois e chegou a Washington como senador há menos de quatro. Projetado nacionalmente, tem sido comparado com John Kennedy por seu talento retórico e seu carisma poderoso, além de estar muito ligado à família (veja o quadro). Também lhe apontam semelhanças com Ronald Reagan por sua habilidade de dizer o que os americanos querem ouvir. Mudança e esperança – eis o binômio de seu discurso para um eleitorado farto de Bush, da guerra, da crise econômica. Tem algo, no tom do discurso, na entonação sermonária, de um Luther King, mas não quer ser um líder negro. Quer ser um líder americano.

No dia 4 de abril passado, no 40º aniversário do assassinato de Luther King, um homem inspirado cuja luta resultou na fundação da moderna democracia americana, Obama fez questão de lembrar a data. Mas deixou claro que a luta de Luther King era por justiça social e econômica – não por justiça racial. Luther King interpretava que a questão racial na sociedade americana de sua época dizia respeito a quase tudo, mas, sozinha, não queria dizer nada. No país que agora despacha um negro para a disputa da Casa Branca, apesar dos enormes avanços registrados nos últimos quarenta anos em termos de igualdade racial, continua sendo assim. Obama, até agora, tem sido exemplarmente vitorioso. Ganhou a indicação democrata, mas ganhar a eleição em novembro é outra coisa. Nas pesquisas mais recentes, está à frente de McCain, mas nunca mais do que 6 pontos. O eleitorado americano é mais branco e mais conservador do que o eleitorado democrata. Por enquanto, Obama só tem o que comemorar. Na semana passada, disse que faria uma raríssima trégua na campanha e passaria o fim de semana em Chicago, com a família. Mandou dizer que faria um passeio de bicicleta com as filhas e sairia para uma noite romântica com a mulher. Fica a sugestão para que mostre a Michelle os versos de Vinicius que sua mãe ouviu em forma de canção meio século atrás na mesma cidade de Chicago:

"A felicidade é como a gota
De orvalho numa pétala de flor
Brilha tranqüila
Depois de leve oscila
E cai como uma lágrima de amor".

 

Abram alas que aí vem Michelle Obama


Richard Perry/The New York Times
PATRIMÔNIO POLÍTICO
No palanque, Michelle é exuberante: negra e vitoriosa

Quando o marido resolveu candidatar-se, Michelle Obama, 44 anos, queria saber duas coisas: como seria a vida das filhas no tumulto de uma campanha e como o marido conseguiria dinheiro. Quando a equipe lhe apresentou um plano detalhado, Michelle deu seu aval. Ela não manda nada na campanha, não participa de reuniões de estratégia, não dá a linha política – seu negócio é cuidar do marido e de sua imagem. Exige que ele, mesmo no sufoco de uma agenda extenuante, vá ao espetáculo de balé das crianças e compareça às reuniões de pais e mestres na escola. Sua missão é manter a família com os pés no chão, sem deslumbre. "O que me interessa são as coisas do dia-a-dia", diz. Será a perfeita dona-de-casa talhada para ser uma primeira-dama de roda de chá?

Nada. Michelle é articulada, bem-humorada, sarcástica e carrega nas veias um sangue que ferve mais que o do marido. Logo no início das primárias, quando começou a chamar a atenção da imprensa, deu uma saraivada de entrevistas. Disse que Obama ronca, cheira mal de manhã, não põe a manteiga na geladeira e deixa as meias sujas espalhadas pela casa. Foi um rebu. Uns a acusaram de diminuir e emascular o marido. Outros a elogiaram por humanizá-lo, num ponto da campanha em que Obama ainda estava a um passo da santificação. Depois, saudando o crescente apoio ao marido, disse que "pela primeira vez" em sua vida adulta estava "realmente orgulhosa" do seu país. Outro rebu. Acusaram-na de ser impatriótica.

Michelle chegou ao estrelato dizendo que estava tentando "ser o mais autêntica possível" e, na pancadaria da disputa, percebeu que precisava medir tudo, das palavras à barra da saia, sob pena de deixar o marido na linha de tiro. Aos poucos refreou sua espontaneidade e as entrevistas. Mas é um patrimônio político. Quando os negros desconfiavam da negritude de Obama, chamaram Michelle. Crescida no degradado sul de Chicago, onde morou com os pais e o irmão num apartamento de apenas um quarto, ela parecia mais autenticamente negra que o marido. Subiu nos palanques exuberante, e deu o recado. Negra e vitoriosa. Formou-se em sociologia por Princeton, em direito por Harvard. Antes da campanha, fazia 200 000 dólares por ano como administradora de um centro médico.

Conheceu Obama em 1989 e ignorou os encantos e avanços dele, até aceitar o convite para saírem juntos. Estão casados há quinze anos. Obama deu-lhe a liberdade de pensamento que ela não tinha. Michelle deu-lhe a estabilidade familiar que ele não tinha. Em Chicago, não moram muito longe do apartamento onde ela se criou, mas sua casa agora tem três pisos e vale 1,7 milhão de dólares. Michelle não tem babá. Quando viaja pela campanha, quem fica com as "duas pessoinhas" é sua mãe, hoje com 70 anos: "Agradeço a Deus pela vovó". Pelo que representa, pelo que é e pela bela estampa – tudo em cima de 1,80 de altura e longas pernas –, Michelle será, se o marido ganhar, uma primeira-dama inesquecível. Pode apostar.

 

Soltando o verbo

Morry Gasch/AP

Festejado como orador habilidoso, Obama levanta a massa em seus discursos, embora quase nunca seja muito claro sobre suas idéias. A seguir, seus truques retóricos mais freqüentes:

"Yes, we can"
(Literalmente: "Sim, nós podemos") 
É o grito de guerra de Obama. A frase é concisa, as palavras são curtas, o ritmo é marcado. Nos comícios, a platéia começa a entoá-lo, com Obama dando o compasso, e o coro vai se agigantando até ganhar um clima de transe coletivo

"We are the ones we’ve been waiting for"
(Literalmente: "Somos aqueles por quem estávamos esperando") 
É uma frase recorrente do candidato. O truque retórico, aqui, é dar à sua campanha e à sua candidatura uma aura de obra coletiva. Em inglês, a frase tem um eco de sermão religioso, como uma profecia prestes a se realizar

"…if you are ready for change" 
(Literalmente: "…se vocês estão preparados para mudar") 
Obama encerra promessas com esse bordão. O apelo, aqui, é encobrir o tom de que o candidato está tentando convencer a platéia e parecer que faz um convite despretensioso – mas fica implícito que só não o aceita quem não está sintonizado com seu tempo

 

Em busca dos 
Kennedy

Nos Estados Unidos, a política parece estar sempre à procura de suprir o vácuo deixado por John Kennedy, assassinado em 1963 aos 46 anos. Adicionalmente, ficou a carência eterna de uma primeira-dama para suceder à mulher, Jackie, morta pelo câncer em 1994. O senador Barack Hussein Obama tinha só 2 anos quando uma bala estourou a cabeça de JFK em Dallas. Hoje, ele embarca celeremente em toda canoa capaz de associá-lo à mística dos Kennedy. Primeiro, aproveitou o embalo das comparações com o presidente assassinado – pela semelhança de ambos na retórica, no carisma, na juventude. Depois, faturou alto em janeiro passado ao receber o apoio do senador Ted Kennedy, 76 anos, submetido dias atrás a uma cirurgia para duelar com um recém-descoberto câncer no cérebro. Na semana passada, alvo de uma pressão implacável para escolher a senadora Hillary Clinton como vice em sua chapa, Obama deu um drible nomeando uma comissão de três pessoas que se encarregará – para inglês ver – de procurar opções. Um dos membros da comissão é Caroline Kennedy, 50 anos, a única ainda viva dos quatro filhos de JFK e Jackie.

Em campanha, Obama comporta-se como se carregasse o estandarte político dos Kennedy. Já se disse também que a energia de sua campanha, com a enorme mobilização que provocou entre os jovens, evoca o clima da eleição de JFK em 1960. Obama lembra sempre que nasceu em 1961, quando Kennedy cumpria seu primeiro ano na Casa Branca, insinuando muito de leve que a identidade de datas esconderia algum significado superior à mera coincidência cronológica. Desde que recebeu o apoio de Ted Kennedy, Obama se empenha em capturar a imagem de herdeiro político da família – o que certamente dá voto. No último domingo de maio, depois do diagnóstico do câncer de Ted, Obama foi convidado para substituí-lo na saudação aos formandos da Universidade Wesleyan, historicamente ligada aos Kennedy. No discurso, cobriu Ted de elogios e, em tom perigosamente próximo do epitáfio, defendeu o legado político da família.


Fotos Damon Winter/The New York Times, Jason Reed/Reuters
COM O ESTANDARTE
Obama, recebendo o apoio dos Kennedy, em janeiro passado: o candidato apresenta-se como herdeiro político da família – olhe obutton

É intrigante o véu de encantamento que cobre os Kennedy até hoje, considerando que a história da família já foi fartamente divulgada e não tem especial nobreza. O patriarca Joseph Patrick Kennedy, o velho Joe, construiu sua fortuna contrabandeando uísque durante a Lei Seca e fez de tudo – tudo mesmo – para ter um filho presidente. Arranjou para JFK uma condecoração fajuta de herói de guerra, escondeu que a amante do filho era espiã nazista e comprou-lhe prestígio intelectual, pagando jornalistas e acadêmicos para escrever artigos que o filho assinava. A própria passagem de JFK pela Casa Branca, chamada de "reinado de Camelot", ficou a léguas da sobrançaria que o apelido sugere. Teve a atrapalhada invasão de Cuba na Baía dos Porcos, incubou o desastre da Guerra do Vietnã, mas – reconheça-se – evitou um confronto nuclear devastador com os soviéticos. Além disso, é intrigante que, num país de tradição puritana, a obsessão sexual do presidente incomode tão pouco. JFK só não foi flagrado por Jackie farreando com duas meretrizes na piscina da Casa Branca porque, em episódio célebre, os seguranças distraíram-na enquanto ele e as companhias fugiam – pelados.



 
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