Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, junho 03, 2008

O xerife monetário

OESTADO DE S PAULO

Ilan Goldfajn


Pedem-se as bebidas mais caras, exageram-se as porções. O consumo é claramente excessivo na longa mesa do bar. Mas poucos acham que a sua despesa individual fará diferença no total. Pudera, a conta vai ser dividida por todos no final. Para resolver a agonia individual, alguns resolvem temporariamente fantasiar que os preços são menores que os cobrados. O excesso continua e a conta vai ficando ainda mais cara. É o fenômeno da inflação global. Ninguém se sente responsável por ela. Resulta do além, do aumento mundial dos preços das commodities. Alega-se que contra essa inflação global não há combate local possível. Melhor subsidiar alguns preços de commodities e continuar a toada. Mas, assim, a inflação piora no mundo. Como isso vai terminar? Como resolver o que os economistas chamam de ''problema de coordenação'' (não há incentivos individuais para chegar à solução adequada)?

A inflação global tem sido também local. Não há dúvida que a inflação tem subido em quase todos os países do mundo nos últimos 12 meses. Na Ucrânia, chegou a 30%; na Rússia, a 15%; na Indonésia, 9%; na África do Sul, 11%; na China, 8,5%; no Chile, 8%; em Cingapura, 7,5%; na Índia, 6%; no Brasil, 5% - entre vários outros. Na média, a inflação nas 34 maiores economias emergentes subiu para acima de 8%. Esse aumento é conseqüência do rápido crescimento dos países nos últimos anos, que gerou, entre outros fatores, o boom nos preços das commodities.

A reação dos países contra a inflação tem sido tímida (com a notável exceção do Brasil). Não que os juros tenham permanecido intocáveis. Tem havido aperto monetário (subida de juros, aumento de compulsório) em várias economias emergentes. Por exemplo, os juros subiram na África do Sul, no Brasil, no Chile, na Indonésia; e a China, a Índia e a Rússia aumentaram o depósito compulsório (retirada de dinheiro em circulação). Mas essas medidas claramente não têm acompanhado a piora na inflação. O aumento dos juros tem sido abaixo da inflação, o que tornou negativa a média dos juros reais (juros nominais menos inflação ocorrida) para as 34 maiores economias emergentes. Mesmo levando em consideração que os juros visam a combater a inflação esperada - e não a surpresa atual -, a taxa de juros real (chamada ex-ante, nesta definição) encontra-se ainda muito baixa.

As autoridades no mundo têm adotado medidas que visam à proteção contra a inflação, em vez do seu combate. Tem havido proliferação, inclusive no Brasil, de subsídios aos preços de commodities (gasolina, trigo, etc.), redução de tarifas de importação e proibição de exportações agrícolas. Essas medidas aliviam o impacto inflacionário para o país, mas pioram o impacto global. Há menos oferta e mais demanda global pelos produtos atingidos. O sistema de preços está sendo comprometido: se ninguém percebe que os produtos estão ficando mais caros, como esperar que o consumo caia para ajustar com a oferta disponível?

Os dirigentes dos países se auto-enganam que o aumento recente de inflação seja conseqüência apenas da inflação de alimentos, que é um fenômeno mundial, e não haveria nada a fazer contra isso. Na verdade, nem a inflação se restringe a alimentos, nem o combate à inflação deve ignorar o que vem de fora. As economias aquecidas no mundo têm evidenciado gargalos que podem, a qualquer momento, gerar outras pressões de aumentos de preços. Mesmo a inflação de alimentos não deve ser ignorada. Ela pesa no bolso do cidadão e pode desencadear pedidos de aumentos salariais compensatórios, facilmente conseguidos neste ambiente de desemprego em queda, o que aumentaria os custos das empresas, incentivaria ainda mais o consumo e pressionaria a inflação. Uma espiral salários-preços acabaria sendo prejudicial para todos, em especial para os mais pobres no mundo. Interromper essa possível espiral, evitando a contaminação para outros preços dessa inflação global, além de contribuir para que parte dos aumentos de insumos lá fora não seja repassada integralmente, deveria ser um objetivo relevante para os bancos centrais no mundo.

Na prática, ao contrário, domina a idéia de que o problema de inflação é global e há pouco que se possa fazer. Essa atitude tende a perpetuar a inflação no mundo. Para reverter essa situação seria preciso, nos países desenvolvidos, uma desaceleração econômica suficientemente forte (que reduzisse a demanda global e, portanto, a inflação) ou um aperto monetário dos principais bancos centrais.

Até há pouco tempo, a desaceleração que atualmente ocorre nos EUA era vista como uma espécie de tábua de salvação para alguns países emergentes. Seria a forma de combater a inflação global, sem que fosse necessário tomar nenhuma medida de aperto no país. Mas não funcionou. A desaceleração nos EUA não foi suficiente para debelar a inflação global. Ao contrário, a crise nos EUA levou a uma queda dos juros por lá de tal magnitude que impulsionou o preço das commodities a novos patamares, dando o último empurrão para uma inflação preocupante no mundo. Juros mais baixos aumentam o preço das commodities, pois incentivam a adiar a produção/extração para o futuro (para que produzir/extrair hoje? Para vender e investir a receita a juros baixos?), além de deslocar diretamente os investimentos que pagam juros baixos para outros ativos reais, como as commodities.

O mundo parece aguardar uma solução externa para seu problema de inflação. Nenhum organismo multilateral existente - FMI, Banco Mundial ou BIS - tem hoje o papel de coordenar o combate à inflação mundial. Resta, naturalmente, o Federal Reserve (Fed), o banco central americano, que, no imaginário coletivo, seria o perfeito ''xerife monetário'': acabaria com os excessos atuais quando voltasse a subir os juros dos atuais patamares baixos. Será?

Ilan Goldfajn, sócio da Ciano Investimentos, diretor do Iepe da Casa das Garças, é professor da PUC-Rio. E-mail: igoldfajn@cianoinvest.com.br

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