Os séculos americanos
Japão, nos anos 70, Europa, nos 90, e, agora, China.
Eles desbancariam os Estados Unidos. A verdade é que
a hegemonia dos EUA não tem data para terminar
Giuliano Guandalini
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A história das decadências americanas está confinada aos best-sellers. Nos anos 70, o perigo vinha do outro lado do mundo e foi propagado pelo livro Japão, Como Número 1 – Lições para a América, de Ezra Vogel. Nos anos 90, o papel de anunciar o fim da hegemonia econômica nas livrarias ficou por conta do economista Lester Thurow com seu Cabeça a Cabeça,narrativa então levada a sério sobre como a Europa engoliria a economia americana, risco elevado pelo autor à mesma categoria da ameaça representada na Guerra Fria pela União Soviética. Mais recentemente, as notícias da decadência inevitável dos Estados Unidos saltaram para os jornais das páginas de outro best-seller, Colosso: Ascensão e Queda do Império Americano. Fala-se em mundo multipolar e aponta-se agora a China como a sucessora dos Estados Unidos na liderança do planeta. Prevê-se que até 2020 o PIB chinês terá alcançado o americano. Isso pode vir mesmo a ocorrer, embora projeções sejam por natureza apenas a amplificação no tempo de uma realidade atual que pode ou não se materializar. A liderança mundial não se dá somente pela pujança econômica, mas pela superioridade intelectual, moral, política, cultural, tecnológica e científica. Isso não se constrói apenas enchendo contêineres com badulaques produzidos com mão-de-obra escrava e vendidos a preço de banana nas feiras de desconto do mundo.
Quando se examina, por exemplo, o sucesso popular da candidatura do negro Barack Hussein Obama, a superioridade moral dos Estados Unidos se projeta. Os negros, lembre-se, com apenas 13% da população, são minoria no país. As multidões que Obama mesmeriza com seus discursos – em que escolhe bem as palavras para não se elitizar muito, e não o contrário – são predominantemente formadas pela maioria branca. Para capturar a grandeza da situação, imaginemos um candidato concorrendo às eleições presidenciais, digamos, no Irã cujo nome fosse Robert Stewart Spencer, que houvesse estudado em uma escola católica e seu pai tivesse nascido em Israel. Obama é um fenômeno de reinvenção da democracia americana, um bálsamo para as feridas abertas pelo presidente que sai no início do próximo ano, George W. Bush. Embora o júri da história ainda esteja reunido para o julgamento de Bush, a realidade de seu governo, uma mistura de virtude, miopia e força bruta, não foi bem assimilada pelos americanos e pelos cidadãos de todo o mundo. No discurso de aceitação de sua candidatura, feito em julho de 1960, o ex-presidente John Kennedy debruçou-se sobre essa capacidade de regeneração da democracia. "Depois de(James) Buchanan, esta nação precisou de (Abraham)Lincoln; depois de (William Howard) Taft, nós precisamos de (Woodrow) Wilson; depois de Herbert Hoover, nós precisamos de Franklin Roosevelt – e depois de oito anos de narcolepsia a nação precisa de uma liderança forte e criativa na Casa Branca." Nessa linha de raciocínio, em que a herança de presidentes desastrosos precisa ser endireitada por um sucessor mais preparado, depois de Bush os Estados Unidos teriam muito a ganhar com Barack Obama. Não é difícil melhorar se se toma como válido para todo o mundo o diagnóstico da política de Bush para o Oriente Médio feito pelo analista Aaron David Miller: "A equipe de Bush, em oito anos, conseguiu colocar os Estados Unidos na posição inédita de ‘não ser admirados, temidos nem respeitados’".
Mike Blake/Reuters |
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A crítica planetária atual em relação aos americanos vai de sua resistência em abrir mão de subsídios agrícolas ao seu descompromisso diante das questões ambientais. "Reverter a atitude de Bush de simplesmente manter a cabeça enfiada na terra diante do aquecimento global é, talvez, a mais importante tarefa do próximo governo", afirmou o professor de Harvard Kenneth Rogoff, ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI). A administração Bush poderá ser lembrada como aquela que nunca fez tão pouco com tanto. Os Estados Unidos dispõem das melhores universidades do mundo, são campeões disparados em cientistas premiados com o Nobel, registram mais patentes do que todos os seus concorrentes diretos somados. Com um PIB de 14 trilhões de dólares, mesmo que eles cresçam apenas 1%, estaremos falando de um Chile por ano sendo agregado à riqueza do país.
No momento, o país luta para escapar da recessão. O estouro da bolha imobiliária desarticulou as finanças do país. A taxa de desemprego subiu para 5,5% e há 8,5 milhões de pessoas sem trabalho. Um número crescente de famílias enfrenta dificuldades para honrar seus financiamentos imobiliários. Existe 1,3 milhão de casas à venda no país porque seus antigos donos deixaram de pagar as hipotecas. A inflação subiu de patamar, entre outros fatores, por causa do petróleo a cada dia mais caro e da dependência enorme que a economia dos Estados Unidos tem do combustível. "A economia americana não passa por um de seus melhores momentos. Uma mostra disso é que o dólar perdeu parte de seu encanto como reserva de valor", disse a VEJA o professor de Stanford Mike Spence, prêmio Nobel de Economia de 2001. "O governo terá de diminuir o déficit fiscal e elevar a taxa de poupança, para que assim seja reduzido o saldo negativo nas contas externas."
Em outras palavras, se o rombo nos déficits gêmeos (nas contas externas e internas) não for estancado, a moeda americana tenderá a perder mais ainda seu valor. Pode também, e isso seria mais sério, perder seu papel de referência nas transações comerciais mundiais. Mas, em comparação com encruzilhadas que outras nações e os próprios Estados Unidos enfrentaram no passado, a crise atual é contornável com os recursos e instrumentos de política econômica de que o país dispõe. Acima de tudo, os americanos mantêm o seu espírito empreendedor e arrojado, calcado na livre iniciativa, na democracia e no império da lei. Essas virtudes continuam inabaláveis e independem do que pensam seus presidentes. Enquanto essa situação perdurar, a decadência americana vai ficar confinada à prateleira de best-sellers das livrarias.