O ESTADO DE S PAULO EDITORIAL
A partir da publicação na Gaceta Oficial da Lei Habilitante, que organiza o Sistema Nacional de Inteligência e Contra-Inteligência, a Venezuela é um Estado policial. O coronel Hugo Chávez fez uso dos desmedidos poderes que lhe foram concedidos por uma Assembléia Nacional quase que integralmente controlada por ele para baixar uma lei de segurança nacional que nada fica a dever à que sustentou o Partido Nacional-Socialista de Hitler no poder, à que deu ares de legalidade aos sangrentos expurgos de Stalin e à que, ainda hoje, submete a população de Cuba ao jugo comunista. A lei venezuelana, aliás, é uma cópia quase fiel da lei cubana.
Se a lei for aplicada integralmente - e ninguém duvida que Hugo Chávez o faça -, a Venezuela se transformará, como aconteceu nos países citados, numa nação de amedrontados delatores. Felizmente, a imprensa independente, a Igreja Católica e organizações preocupadas com a defesa dos direitos humanos estão reagindo ao arbítrio.
A Academia de Ciências Políticas e Sociais, por exemplo, anunciou que estuda a possibilidade de convocar um referendo derrogatório ou de impugnar a lei no Supremo Tribunal de Justiça. Mas as chances de sucesso de qualquer dessas iniciativas são mínimas. O Conselho Nacional Eleitoral, que poderia organizar o referendo, come na mão de Chávez, e a Suprema Corte é formada por juízes escolhidos a dedo pela mesma mão. Não foi à toa que causou surpresa a atitude da juíza Blanca Rosa Mármol de León, que declarou que a legislação baixada "é uma ameaça para todos nós. Tenho a obrigação de dizer isso, como cidadã e juíza. Esse é um passo na direção da criação de uma sociedade de delatores". Mas essa é uma voz isolada no Supremo Tribunal, pelo menos por enquanto.
A lei tem abrangência universal. Considera órgãos de apoio às atividades de inteligência e contra-inteligência "as pessoas naturais e jurídicas, de direito público e privado, nacionais ou estrangeiras, assim como os órgãos e entes da administração pública nacional, estadual e municipal, as redes sociais, as organizações de participação popular e comunidades organizadas". Em resumo, tudo e todos. E se empresas, entes públicos e pessoas não colaborarem com os órgãos de inteligência, cometerão crime, pois "dita conduta atenta contra a segurança, a defesa e o desenvolvimento integral da nação". A pena de prisão é de 2 a 4 anos, passando para de 4 a 8 anos se o infrator for funcionário público. Cria-se, com isso, o caldo de cultura para a formação de organizações como os Comitês de Defesa da Revolução cubanos, que vigiam os vizinhos, e para a delação generalizada.
Além disso, quem quer que se utilize de meios de coleta de informações - que passam a ser prerrogativa exclusiva dos órgãos de inteligência - comete delito punível com prisão. A redação do dispositivo é propositadamente vaga para permitir que qualquer jornalista, no exercício de sua profissão, seja preso como espião ou o que quer que a autoridade decida, pois a lei permite a edição de medidas administrativas que - pasmem! - "tutelem os direitos e garantias fundamentais das pessoas".
O arbítrio não acaba aí. As operações de inteligência e contra-inteligência terão "caráter processual penal de diligências necessárias e urgentes, sem estar sujeitas a outras condições temporais ou materiais estabelecidas em lei". Acaba o devido processo legal - um direito garantido em qualquer país civilizado. Qualquer pessoa poderá ser objeto de uma investigação secreta, de um inquérito secreto, de um processo secreto, e terminar presa num local secreto, sem acesso a advogados. Juízes e promotores não poderão interferir e, se o fizerem, será sob risco de prisão.
Hugo Chávez anunciou que a nova lei se destina a ser um "escudo" contra "ataques imperialistas". O ministro do Interior, Ramón Rodriguez Chacin, designado para comandar a polícia política, afirmou que ela foi feita para combater a "interferência dos Estados Unidos" e que os agentes serão pessoas "comprometidas com a revolução". Na verdade, a edição dessa lei é mais uma etapa do processo de transformação da Venezuela em um Estado totalitário, sob a tutela de um caudilho.
A lei é uma clara violação da Carta Democrática da OEA. Sua adoção torna a Venezuela de Chávez irremediavelmente incompatível com os princípios do Mercosul, consagrados na Cláusula Democrática.