o estado de s paulo
Mas, ao descer e subir a Avenue Mont-Royal, há algo que nunca vi: crianças mendigando. Fruto de um país rico onde ser mendigo é uma escolha? Talvez, mas ao me lembrar das nossas crianças nos faróis, com adultos vigiando a distância, numa clara exploração de trabalho infantil, tolerada por autoridades que recomendam cuidado para não criminalizar a pobreza, não pude conter um momento de tristeza e indignação.
Possibilidades de resolver este problema, no entanto, existem e começam a ser adotadas. Em editorial de 13 de setembro de 2007, o Estado apontava a diminuição expressiva de crianças em situação de rua em São Paulo. Levantamento da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) mostrou que havia 1.842 crianças e adolescentes vivendo nas ruas no ano passado. Ora, em 2005 eram 4.030, ou seja, temos hoje, se mantido o número de 2007, menos da metade.
A Secretaria de Assistência Social do Município se equipou mais, aumentou as equipes que abordam esses jovens e procuram reconstruir sua vida, junto à sua família, se possível, ou em centros de acolhida, assegurando a freqüência escolar e o estabelecimento de vínculos próprios de uma infância sadia. Curiosamente, Floriano Pesaro, à frente tanto desta bem-sucedida iniciativa como de outra que ajudou também a combater a pobreza e - ao cobrar contrapartidas dos pais que recebiam o dinheiro do Bolsa-Escola (depois transformado em Bolsa-Família) - a retirar crianças das ruas, afirmava na ocasião que a solução do problema em São Paulo passaria pela integração de políticas públicas adotadas na região metropolitana.
As crianças que mendigam em faróis não necessariamente moram na rua. Pesquisas feitas pela Prefeitura mostram que 85% delas moram com sua família, em bairros periféricos ou em municípios da Grande São Paulo, e vão para os cruzamentos da capital a cada dia, com um adulto ao lado, que explora seu trabalho (basta olhar os arredores que se encontrará alguém à espreita, nem sempre um familiar). A situação de desigualdade ainda forte no Brasil, embora tenha certamente mostrado melhoras importantes (o coeficiente de Gini, que reflete a concentração de renda, caiu 5% entre 2001 e 2005, levando-nos ao mais baixo índice dos últimos 30 anos), trouxe-nos uma atitude de aceitação da mendicância infantil como uma conseqüência natural da pobreza, expressa por fórmulas como "assim pelo menos comem".
A mendicância das crianças nos faróis é trabalho infantil e qualquer tolerância da sociedade com esta prática é inaceitável. Também o são a guarda de veículos, a venda de flores, a coleta de material para reciclagem ou outras formas de trabalho que lhes roubam tempo dos estudos ou dos folguedos. Naturalmente, o trabalho infantil é proibido por lei (exceto na condição de aprendiz a partir dos 14 anos), mas só recentemente se criaram um consenso e os instrumentos para combatê-lo com mais eficácia. No governo Fernando Henrique foi criado o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), agora corretamente articulado com o Bolsa-Família, exigindo-se 85% da freqüência escolar para que os pais destes trabalhadores mirins sejam compensados pela decisão de mantê-los na escola. Afinal, as perdas geradas por um cotidiano privado de estudo, brincadeiras, afeto, esporte e lazer são enormes para as crianças e geram um ciclo de transmissão intergeracional de pobreza. A menina ou o menino que trabalha tem baixo rendimento escolar, alto índice de repetência e termina por abandonar os estudos. De acordo com pesquisa realizada pela USP, com base em dados da Pnad, quem trabalha a partir dos 7 anos de idade chega a receber um salário cinco vezes menor do que quem começa a trabalhar aos 14 anos.
Passando por São Paulo rapidamente, em maio, notei a ausência de crianças nos cruzamentos por que costumo passar em meus trajetos. A situação econômica favorável certamente explica parte deste resultado, mas políticas públicas competentes como o Peti e as adotadas por Floriano Pesaro, no Município de São Paulo, foram essenciais para o resultado. Afinal, só entre 2005 e final de 2006, mais de mil crianças foram retiradas de faróis, no programa "Dê mais que esmola. Dê futuro".
Essa experiência se inspirou em outra igualmente bem-sucedida, iniciada por Cássio Taniguchi em Curitiba, onde hoje desapareceram as crianças pedintes. Em 2003 e nos anos seguintes era comum ver na cidade faixas desestimulando a esmola: "Criança quer futuro. Não quer esmola." Logo abaixo do slogan se via o nome do fundo de ajuda social mantido pela Prefeitura, para onde deveriam ser destinadas as doações. Deu tão certo que foi mantida por seu sucessor. Em Curitiba o número de crianças nas ruas girava em torno de 600 em 2002, zerando o número em 2006. Até hoje crianças que chegam às ruas não permanecem mais que três horas - são abordadas pelo serviço social e levadas de volta para casa. A sociedade curitibana percebeu a situação de exploração e rechaça a permanência de crianças nas ruas, seja qual for o motivo.
A economia das esmolas a crianças nas ruas mobiliza hoje, em São Paulo, cerca de R$ 2,1 milhões por mês, segundo estimativas da Prefeitura. Certamente há uma forma inteligente, aos moldes do trabalho iniciado pelo ex-secretário Pesaro, de utilizar esses recursos para acabar de retirá-las e responsabilizar quem explora seu trabalho. São Paulo merece.
Claudia Costin, professora do Ibmec-SP e da Universidade de Montreal, foi ministra da Administração e Reforma do Estado e secretária de Cultura do Estado de São Paulo