Milagre no Acre
"A verdade é que, quanto mais se fala na questão dos índios,
mais difícil se torna ver uma tribo nativa que possa realmente
ser descrita como uma tribo nativa – e que não esteja pedindo
nada ao governo ou a quem quer que seja."
Foi realmente uma novidade ver nas primeiras páginas dos jornais, alguns dias atrás, fotografias de um grupo de índios sem bermudão, sandálias Havaianas ou camiseta de time de futebol. Muito ao contrário, apareciam com pintura no corpo, arco, flecha e os mesmos trajes que, segundo se supõe, usavam milhares de anos atrás – algo raríssimo, hoje em dia. Não estavam querendo conversa. Apontavam seus arcos para o avião que sobrevoava sua aldeia, e de onde foram tiradas as fotos que nos dias seguintes iriam correr mundo; davam a impressão de ser do tipo que antigamente os sertanistas chamavam de "índio bravo". Surpresa, também, foi o lugar onde apareceram – nuns confins perdidos no fundo da Amazônia, ali pelas cabeceiras do Rio Juruá, na fronteira do Acre com o Peru. Sim, surpresa, porque o normal, ultimamente e cada vez mais, é ver os índios brasileiros em Angra dos Reis, levantando objeções à construção de uma terceira usina nuclear na área, em plantações de eucalipto no Espírito Santo, onde reivindicam da Aracruz o pagamento de indenizações diversas, ou no interior de Minas Gerais, onde querem que a mineradora MMX lhes dê tratores. Invadem repartições públicas em Curitiba e outras cidades para pedir mais verbas da Fundação Nacional de Saúde. Aparecem, até, nas obras do Rodoanel de São Paulo. A verdade é que, quanto mais se fala na questão dos índios, mais difícil se torna ver uma tribo nativa que possa realmente ser descrita como uma tribo nativa – e que não esteja pedindo nada ao governo ou a quem quer que seja.
Os índios das fotos, talvez uns 250 ao todo, aparentemente fazem parte de um dos sessenta ou setenta grupos que até hoje vivem em isolamento total, ou quase, dentro do território brasileiro. Foram poupados até agora, milagrosamente, da presença de padres, ONGs estrangeiras ou nacionais e funcionários da Funai. Não conhecem o MST, nem plantadores de arroz, nem editorialistas de jornais de Nova York. Ninguém, até agora, lhes propôs um projeto de sustentabilidade. Não se sabe se esses índios são felizes ou não em seu estilo de vida da idade da pedra; ninguém perguntou a eles. Na verdade, além do fato de que existem, há muito pouca informação a seu respeito. O veterano sertanista José Carlos dos Reis Meirelles Jr., integrante da expedição que acabou de fotografá-los, chegou bem perto da tribo quatro anos atrás – perto o suficiente para levar uma flechada no rosto, após o que preferiu não tentar novos contatos. Só voltou a procurar o grupo, e divulgar as fotos tiradas do alto, porque acredita que hoje os índios dessa aldeia começam a ser ameaçados por gente reconhecidamente difícil: garimpeiros, operadores de motosserras e cocaleiros peruanos, indivíduos que têm reduzido interesse, e paciência menor ainda, em relação ao futuro das tribos do Alto Juruá. Elas não querem nenhum contato com outras etnias, como dizem os antropólogos. Mas outras etnias, como as citadas acima, querem contato, sim – não com os índios, talvez, mas certamente com as terras onde vivem. Eis o drama formado.
O futuro dos índios da fronteira entre o Acre e o Peru não parece promissor. Mais cedo ou mais tarde alguém acabará entrando nas áreas que ocupam; vai ser inevitável, então, que lá apareçam, em seguida, os funcionários da Funai, os agentes da Polícia Federal, os membros do Ministério Público e todo o aparato do qual o governo brasileiro dispõe para proteger os índios. O resultado disso, por toda a experiência que se tem até agora, é quase sempre uma tristeza. Os índios podem escapar dos tiros, das doenças e de outros fatores de extermínio, mas se transformam em dependentes do governo. No papel, nesse sistema, costuma caber aos índios um mundo ideal. O governo brasileiro, na falta de outras idéias, acha que a única maneira de resolver a questão é socar em cima deles todo tipo de direitos, incluindo os mais extravagantes ou irreais, e dispensá-los de quaisquer responsabilidades ou deveres. Em vez de receberem a cidadania, os índios recebem "proteção". O resultado é que ficam vagando entre dois mundos precários. No primeiro, acostumaram-se a viver de benefícios que não vêm do trabalho; no segundo, acostumaram-se a viver em conflito permanente com o que existe à sua volta, como demonstra o sugestivo episódio dos índios caiapós que retalharam a facão o braço de um engenheiro da Eletrobrás numa recente reunião entre autoridades e nativos no Pará. O desfecho do caso foi exemplar. Ficou estabelecido que o uso do facão faz parte da cultura caiapó e que o real culpado, no caso, foi o engenheiro, que se mexeu quando ameaçado; se tivesse ficado frio, como recomendaram depois antropólogos e outros peritos, tudo iria acabar numa boa.
É difícil imaginar que as coisas possam melhorar desse jeito – inclusive do ponto de vista dos índios. O deputado Aldo Rebelo, tempos atrás, fez um relato interessante a respeito, num artigo para O Estado de S. Paulo. Em viagem ao sul da Bahia, encontrou uma vendedora de artesanato pataxó, a quem perguntou onde estava o marido. "Voltou para a roça", respondeu ela. "Cansou dessa profissão de índio."