Artigo - |
O Globo |
12/6/2008 |
Hoje, dia dos namorados, é nos EUA o Loving Day. Loving é o sugestivo sobrenome do branco Richard, que se casou em 1958 com a negra Mildred Jeter, ambos do estado de Virgínia. Eles se casaram no Distrito de Colúmbia, pois a Virgínia proibia uniões inter-raciais, mas cometeram a imprudência de continuar a residir no condado de Caroline. Um tribunal os condenou a um ano de prisão, com suspensão da sentença condicional à transferência do casal para outro estado. Richard e Mildred se mudaram e deflagraram uma batalha judicial que chegou à Corte Suprema. No 12 de junho de 1967, a corte deu ganho de causa aos Loving. O veredicto derrubou os pilares remanescentes da segregação legal de raças. Aquele marco histórico é celebrado em cidades americanas por meio de um modesto projeto cívico de exaltação da tolerância e da igualdade. Mas a comemoração não tem o apoio dos arautos de ações afirmativas de raça: a história dos Loving não serve ao propósito de dividir a sociedade em grupos que se definem pelo sangue. O juiz que condenou Richard e Mildred escreveu: "Deus Todo-Poderoso criou as raças branca, negra, amarela, malaia e vermelha, e as colocou em continentes separados. O fato de que Ele separou as raças mostra que Ele não pretendia que as raças se misturassem." A corte de apelações que reiterou a condenação a justificou sob o argumento de que a lei estadual se destinava a "preservar a integridade racial dos cidadãos" e a evitar a "adulteração do sangue". O sangue percorre toda essa história. As leis antimiscigenação se difundiram com o retorno ao poder estadual das velhas elites do Sul dos EUA, após o encerramento da Reconstrução, em 1877. Tais leis só podiam ser aplicadas mediante uma rigorosa delimitação das fronteiras da "raça branca". A regra da gota de sangue única propiciou a delimitação. Depois de diversos ensaios, essa regra alcançou uma definição consensual na Lei de Integridade Racial de Virgínia, de 1924. De acordo com ela, branco seria aquele "que não tenha traço algum de qualquer sangue senão o caucasiano". Walter Plecker, chefe de registro de estatísticas do estado, simplificou a lei pela emissão de certidões de nascimento apenas nas categorias "branco" e "de cor", resumindo a dois grupos polares as seis raças descritas no texto legal. A lógica da raça abomina a mestiçagem. No Brasil, sob o signo das leis raciais, o governo deu o primeiro passo na adoção de uma regra da gota de sangue única. Como os brasileiros insistem em usar termos fluidos para descrever a si próprios, determinou-se que, na divulgação de estatísticas, os grupos censitários "preto" e "pardo" sejam agrupados na categoria "negros". O segundo passo compete às universidades engajadas em programas de preferências raciais. Como a investigação do "sangue" não geraria resultados funcionais, pois significativa parcela dos brasileiros de pele clara tem ancestralidade africana, comissões universitárias agem como substitutos de Plecker, dividindo os jovens candidatos em "negros" e "não-negros". A linguagem do sangue já invadiu a nossa Corte Suprema. O voto do relator, ministro Carlos Britto, no julgamento de uma ação que contesta o Programa Universidade para Todos (Prouni), estabelece uma relação espúria de descendência entre "negros" e escravos e introjeta a raça na lei ao justificar a discriminação reversa como "uma enfática proclamação de que o componente negro do sangue brasileiro é motivo de orgulho nacional". Se a maioria da corte seguir o voto do relator estará aberta a trilha para a emissão de certificados raciais para cada um dos cidadãos. No veredicto de Loving versus Virgínia, os juízes caracterizaram as "distinções entre cidadãos derivadas apenas de suas ancestralidades" como "odiosas para um povo cujas instituições estão fundadas na doutrina da igualdade" e ficaram no limiar de declarar ilegais as classificações raciais. Com Barack Obama, os EUA avançam um pouco mais na tentativa de desinventar as raças. Por aqui, a meta é desinventar o Brasil, para consagrar as raças. |
Entrevista:O Estado inteligente
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