SÃO PAULO - Para quem lidou tantas e tantas vezes com o tema da repressão durante o ciclo militar, chega a ser surpreendente a hipótese de que pudesse haver alguma reação das Forças Armadas ao livro "Direito à Memória e à Verdade", que acaba de ser lançado pelo governo federal.
O título, aliás, é daqueles que proíbem qualquer contestação: todo país tem o direito inalienável à memória, ainda que possa ser tenebrosa em alguns momentos (ou muitos momentos), e à verdade, por desagradável que possa ser.
Na verdade, o que deveria surpreender é a tardança do Estado brasileiro em dar um passo na direção da "memória e da verdade". O país é o último dos sul-americanos que foram submetidos à ditaduras militares a examinar com a devida lupa os abusos ocorridos.
Houve, sim, esforços particulares ou da sociedade civil. Sob comando da Arquidiocese de São Paulo, quando dom Paulo Evaristo Arns era o cardeal-arcebispo, publicou-se o "Nunca Mais", ampla compilação das violências praticadas.
Livros, saíram muitíssimos, inclusive de autoria de oficiais que participaram do mecanismo repressivo. Nunca é demais louvar o extraordinário trabalho do jornalista Elio Gaspari nos quatro volumes (até agora) sobre o período militar, em que o mecanismo repressivo foi bastante esmiuçado, não só do ponto de vista operacional mas também sobre a, digamos, formatação da repressão nos escalões superiores.
Mas esses livros, justamente por terem sido elaborados do lado de fora do aparelho de Estado, não puderam dar conta completa do quesito "memória". Não puderam, por exemplo, como é óbvio, devolver os corpos de "desaparecidos" às famílias. Seria absurdo confundir esse ato, profundamente humanitário, com revanchismo. A memória só é revanchista para quem tem consciência culpada.
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