"Informação privilegiada" na venda da Ipiranga
é um desafio novo para a bolsa brasileira
Juliana Duailibi
Felipe Araujo/AE |
Os compradores representantes da Braskem, da Ultra e da Petrobras exigem investigação |
O mercado de capitais brasileiro vive hoje a fase mais exuberante de sua história. Duas novas empresas abrem o capital a cada mês, e o volume negociado é recorde: saltou de 98 bilhões para 599 bilhões de reais entre 1996 e 2006. Com tudo isso, as empresas passaram a depender menos de empréstimos bancários. O montante captado na bolsa superou, pelo segundo ano consecutivo, os empréstimos do BNDES – até então a principal fonte de dinheiro de longo prazo do país. Além disso, os investidores encontraram nas ações um meio seguro de ganhar dinheiro e planejar o futuro. Tudo isso só foi possível porque a Bovespa e as companhias decidiram proteger os acionistas minoritários da tradicional cultura de faroeste do mercado de capitais. Todo esse avanço foi colocado à prova na terça-feira passada, um dia após ser tornada pública uma das maiores e mais complexas aquisições já fechadas no país: a compra das Empresas Petróleo Ipiranga pela Petrobras, pelo Grupo Ultra e pela Braskem. Um negócio de 4 bilhões de dólares, que envolve os setores de petroquímica, refino e distribuição de derivados de petróleo.
A Comissão de Valores Mobiliários, autarquia que fiscaliza o mercado de capitais brasileiro, anunciou a abertura de investigação para apurar indícios "veementes" de vazamento de informações sobre a venda da Ipiranga. A CVM descobriu que, na sexta-feira 16, enquanto oito representantes das companhias trabalhavam secretamente nos últimos detalhes da operação na sede da Petrobras, no Rio de Janeiro, ela já havia vazado para o mercado. Somente naquele dia, o volume de negócios com um dos papéis da Ipiranga foi dez vezes maior que a média mensal. Há no episódio claros sinais de insider trading – uso de informação privilegiada por agentes do mercado. A reação da CVM foi imediata. Numa atuação inédita e conjunta com o Ministério Público Federal, a autarquia obteve da Justiça o bloqueio das contas de alguns dos principais suspeitos. Ao todo, estão sendo investigados um fundo de investimento sediado nos Estados Unidos, que lucrou 3,3 milhões de reais com a operação, e 25 pessoas físicas. Um dos suspeitos é funcionário com cargo de gerência em uma das três compradoras da Ipiranga. A compra da empresa foi elaborada e tocada pelo investidor Pércio de Souza, da Estater, uma assessoria financeira. As negociações corriam havia mais de seis meses sob o codinome sigiloso de "Projeto Luppi" – referência às iniciais da Ipiranga, Petrobras e do Grupo Ultra (a Braskem entrou mais tarde nas negociações). Apesar do sigilo, os sinais de vazamento são fortíssimos. A proposta final foi fechada na sexta à noite, mas os compradores haviam dito aos vendedores, no domingo anterior, que uma oferta era iminente. Cerca de 100 pessoas sabiam da operação. Além dos executivos envolvidos diretamente no negócio, também participaram diretores de bancos que prestaram assessoria financeira, assim como advogados e auditores.
Bebeto Matthews/AP |
Martha Stewart: presa por tentar osbtruir processo que apurava vazamento de informação |
O vazamento de informações não é exclusividade brasileira, mas uma praga inerente ao capitalismo. O que diferencia um país desenvolvido de uma república de bananas é justamente sua capacidade de combater a prática. A SEC (Securities and Exchange Commission), a correspondente americana da CVM, é um retrato do grau de profissionalismo. A comissão possui 3.590 funcionários e um orçamento de 888 milhões de dólares, vinte vezes maior que o da CVM. "No Brasil ninguém temia punições. Agora, vai ficar mais complicado", afirma Marcelo Trindade, presidente da CVM, em referência ao esforço feito pela autarquia e por procuradores federais para investigar fraudes no mercado de capitais. Nos Estados Unidos, as punições são inúmeras e exemplares. O investidor americano Michael Milken fez escola em Wall Street ao descobrir, nos anos 80, que poderia ganhar bilhões de dólares comprando na baixa e vendendo na alta os títulos emitidos por empresas com histórico medíocre e enorme risco de crédito – os chamados junk bonds. No fim da década, descobriu-se que Milken operava por meio de uma rede de informantes que manipulava o mercado e obtinha dados secretos de empresas cujas ações eram negociadas em bolsa. Resultado: o "rei dos junk bonds", como era conhecido, foi condenado a dez anos de prisão. Passou 22 meses atrás das grades e pagou uma multa milionária. É assim que deve funcionar o capitalismo. A celebridade de TV americana Martha Stewart foi presa em 2004 acusada de obstruir a Justiça num processo que apurava o uso de informação privilegiada na negociação de ações de uma empresa de biotecnologia, cujo dono era seu amigo.
Como o mercado acionário brasileiro é embrionário, o país não consegue punir essas práticas com eficiência. Desde 2001, quando passou a vigorar a lei que criminalizou esse tipo de operação, ninguém foi preso. Ainda não se sabe quem vazou as informações sobre a venda da Ipiranga, mas as vítimas já são conhecidas. São os investidores que, sem saber do negócio, venderam suas ações, na baixa, a um grupo de espertalhões. Se a CVM descobrir e punir exemplarmente os culpados pelo vazamento e seus cúmplices, o mercado de capitais brasileiro justificará o sucesso recente. Caso contrário, todo o país sairá perdendo.