Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, março 06, 2007

Merval Pereira - Livre comércio?



O Globo
6/3/2007

O presidente Lula explicitou ontem, no seu programa de rádio, a estratégia que o Itamaraty já vinha desenvolvendo na retomada das negociações da Rodada de Doha: os países emergentes, reunidos no G-20, passariam a aceitar negociações em torno do setor de serviços para que, tanto Estados Unidos quanto União Européia, aceitem reduzir os subsídios agrícolas, permitindo que os países do Terceiro Mundo possam competir naqueles que são os maiores mercados do mundo.

O assunto, tema delicado nas negociações da falecida Alca, volta para o âmbito da Organização Mundial do Comércio - como, aliás, o Brasil sempre defendeu - mas agora tem como pano de fundo a parceria que pode ser firmada entre os Estados Unidos e o Brasil no setor dos biocombustíveis.

E como ponto de partida o subsídio ao trigo e ao milho que o governo americano dá aos produtores para tornar o etanol competitivo com o produzido no Brasil e em outros países, da cana-de-açúcar.

Paralelamente, dentro da política de parceria energética, o Brasil vai também pedir o fim da taxa de exportação do etanol, como já acontece com os países da América Central e do Caribe que fizeram acordos bilaterais com os EUA, ou pelo menos uma cota anual livre de taxação.

O fato de o governo dos EUA vir negociando com esses governos, incentivando-os a produzir etanol da cana-de-açúcar, garantindo financiamento e o mercado americano, parece não assustar o presidente Lula.

Pelo contrário, ele ontem, no mesmo programa de rádio, disse que está empenhado em convencer o mundo de que "a produção de combustíveis renováveis, geradores de empregos, vai favorecer não apenas a Humanidade como um todo, mas pode possibilitar que os países ricos possam ter projetos de investimento na agricultura em países menos desenvolvidos, sobretudo países da África, da América Central, e esses países, então, terem um crescimento econômico, mais geração de emprego e distribuição de renda".

Essa postura indicaria ainda que o governo brasileiro está atento à necessidade de o país abrir mercados também para a exportação da tecnologia de produção de etanol da cana-de-açúcar, que dominamos. Mas a negociação sobre o tema serviços, que seria a contrapartida dos países em desenvolvimento à abertura dos mercados internacionais para os produtos agrícolas, não será fácil.

Nos momentos mais duros das negociações da Alca, o chanceler brasileiro Celso Amorim conseguiu colocar na mesa de negociações valores mais amplos que o simples comércio. Definiu que excluir das negociações temas de interesse direto dos países desenvolvidos, como por exemplo regras de investimento, seria mais que um contraponto à decisão dos EUA e da União Européia de não discutir a liberação dos subsídios à agricultura. Seria defender os interesses nacionais.

Na opinião dele, a Alca, para se justificar, teria que permitir políticas de desenvolvimento nacionais. Celso Amorim baseava sua ação na assertiva de que não poderíamos aceitar regras de compras governamentais, ou de proteção a investimentos estrangeiros, que impedissem o país de ter uma política industrial própria.

Mas havia controvérsias dentro do próprio governo, pois já àquela altura alguns consideravam que, nos tempos atuais, em vez de uma política industrial nacional, dever-se-ia simplesmente escancarar a economia, ampliando o comércio internacional. O exemplo mais citado era o do México, cujas exportações cresceram cerca de 150% em dez anos com o Nafta.

O simples volume de comércio nessa magnitude fez com que as agências de rating elevassem o nível do México. A chave para o crescimento sustentado do país nos próximos anos, portanto, é o comércio internacional. Uma área sensível é a de compras governamentais. Os negociadores dos Estados Unidos já haviam concordado que o compromisso da transparência seria suficiente.

Quando houvesse uma licitação internacional para compras públicas, se alguma empresa estrangeira estivesse interessada teria acesso sem restrições às informações. Esse procedimento não teria qualquer problema para o governo brasileiro, já que as informações são públicas e estão no sistema de governo eletrônico, um dos mais avançados do mundo.

Outro ponto difícil, de interesse dos Estados Unidos, era o compromisso de abrir todas as áreas às empresas estrangeiras, sem limitações. Por instrução direta do Planalto na ocasião, esse compromisso não foi assumido. No plano federal, alguma flexibilidade foi estudada, mas havia a intenção de usar contas públicas para exigir contrapartidas de transferência de tecnologia, ou de investimentos em algumas áreas estratégicas para o Brasil.

Todas essas questões podem voltar agora à mesa, e talvez seja mais fácil hoje do que há dois ou três anos flexibilizar alguns procedimentos, já que agora há uma proposta concreta na mesa de negociações de parceria energética, na qual o Brasil tem posição privilegiada. O país também ampliou sua balança comercial e mostrou-se competitivo no comércio internacional.

Tudo vai depender do estado geral da economia mundial, depois que a turbulência das bolsas mundiais passar e ficar mais claro exatamente o que está acontecendo com os dois motores do mundo globalizado, os EUA e a China.

A decisão do governo chinês de "arrefecer" o crescimento para 8% este ano, pode ser um sinal de que, mesmo assim, o comércio internacional vai continuar contando com a força de compra da China para manter os preços das commodities em patamares altos, o que é fundamental para o Brasil manter superávits comerciais expressivos.

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