Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, março 14, 2007

João do Fórum PAULO RABELLO DE CASTRO




Folha de S. Paulo
14/3/2007

A história de João da Silva já foi contada, mas é preciso contá-la de novo aos homens do Fórum, os de Lula da Silva

A VIDA nos oferece muitas mortes, ainda que só uma nos leve embora a chama do corpo. As outras são mortes da alma, provisórias ou permanentes. No Brasil de hoje, brasileiros vivem muitas mortes em vida que lhes são servidas pelas sutis vilanias dos poderosos. Somos como o menino João Hélio, arrastados de muitos modos por maldades invisíveis, inconscientes, mas sofrendo sempre. Já foi menos doído e menos doido. Muitos morrerão como qualquer João, João da Silva ou João do Fórum.
A esse dedicarei hoje uma homenagem. Ergo um brinde ao excepcional trabalhador brasileiro, que não desiste nunca. É ele quem paga a conta dos despautérios econômicos da nação, inclusive os mais recentes, encomendados à guisa de o proteger e de resgatar seus direitos.
João da Silva, brasileiro nascido em 1981. Para dissecar o futuro de João, reuniram-se na semana passada os homens da Previdência Social, em Fórum especialmente criado por comando direto do presidente Lula, que também quer conhecer o ponto futuro desse João. Por isso, projeções começaram a ser feitas sobre como estará João, sua previdência, seus direitos, em 2020, em 2030, em 2050, se João chegar lá. Não vai chegar.
A história de João da Silva, o do Fórum, já foi contada anos atrás, mas é preciso contá-la de novo para os homens do Fórum, os de Lula da Silva.
João da Silva começou sua vida profissional como ajudante de caminhão em 1997. Seu primeiro patrão logo lhe assinou a carteira profissional e João passou a descontar para o INSS 8% em folha, mais 20% pagos em acréscimo, pelo patrão, sobre o seu salário bruto.
Passaram-se muitos anos. João rodou por aí, já como motorista, sempre empregado em firmas que recolhiam para o INSS. Quando os cabelos brancos chegaram, João olhou para o espelho e estava em 2022, com 41 anos. Pensou na sua aposentadoria e uma sensação estranha lhe percorreu o corpo. O Congresso Nacional havia, naquela semana, votado mais uma lei de Previdência, a quinta em 15 anos, aumentando o tempo mínimo de contribuição de 40 para 45 anos, combinado com a idade mínima de aposentadoria de 65 anos para homens e mulheres. João fez, então, uma conta de cabeça. Faltariam mais 20 anos de contribuição, sobre os 25 que já contribuíra. Com 61 anos, mesmo assim teria que trabalhar mais quatro, até atingir a idade mínima de aposentadoria.
João continuou rodando. Agora, com 59 anos, sente o peso da vida, dos anos de rodagem. Quer parar, mas sabe que isso não será possível.
Não nesse momento. O Parlamento do Mercosul anunciará, naquela manhã do ano de 2040, que os direitos previdenciários dos contribuintes brasileiros "que ficaram em regime de repartição" deverão ser revistos para reequilibrar o fluxo de receitas às despesas crescentes do INSS. João está nessa. É um dos que sempre contribuíram para o INSS do lado brasileiro. Pelo regime de repartição, distinto dos regimes de capitalização em outras regiões do Mercosul, João contribuiu desde 1997 para sustentar, com os seus recolhimentos, os pagamentos aos demais aposentados, todos esses anos.
Mas, na sua vez de se aposentar, sobraram aposentados e faltaram agora contribuintes jovens para financiá-lo.
A decisão do comitê é difícil e causará muita celeuma. O tempo mínimo de contribuição passará de 45 para 47 anos, e o mínimo de idade para se aposentar será de 70 anos.
João sente enorme cansaço e um desânimo infinito invade sua alma, instalando-se pesadamente no porão de suas amarguras. Serão mais 11 anos de labuta, até 2051. Novas drogas e a clonagem de órgãos agora facilitam a vida de quem deve operar atrás de uma jamanta de 50 toneladas. "Ainda não inventaram a clonagem da alma", pensa João. Ele também reconhece, com tristeza, o acerto do comentário duro de seu sobrinho contabilista, anos atrás: "Tio, você já pagou sua aposentadoria várias vezes. Tenho pena de você".
João relembrou-se de tudo isso enquanto dirigia. A pista estava molhada e o óleo de freio de seu enorme caminhão sangrava traiçoeiramente desde a última parada. Súbito, uma curva chegou rápido demais. A explosão foi ouvida vários quilômetros além daquele lugar.

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