Domingo de carnaval, Renato Janine Ribeiro publicou, no caderno Mais da Folha de S.Paulo, artigo afirmando não defender a pena de morte contra os assassinos de João Hélio porque acha que é pouco. E confessa: “Não paro de pensar que deveriam ter uma morte hedionda, como a que infligiram ao pobre menino. Imagino suplícios medievais, aqueles cuja arte consistia em prolongar ao máximo o sofrimento, em retardar a morte... Torço para que, na cadeia, os assassinos recebam sua paga; torço para que recebam de modo demorado e sofrido.”
Quando um mestre da filosofia política, estudioso do Iluminismo, escreve algo desse feitio, é porque houve a falência da racionalidade e o instinto tomou o lugar da sensibilidade.
Os bandidos venceram, passaram a ditar o comportamento do filósofo, que aderiu aos valores do desprezo à pessoa humana em nome da pessoa humana, vitimado por uma contradição insuperável, tanto que chega a perguntar: “É-se humano somente por se nascer com certas características?”
Essa pergunta já produziu genocídios. Haveria pessoas a serem consideradas titulares de direitos e outras sem direitos.
É justamente em situações-limite, como a morte horrorosa infligida ao pequeno João Hélio, que se testa a validade dos princípios que devem valer mesmo em face daqueles que nos são abjetos.
Cumpre, então, pensar acerca da razão pela qual há sempre reações instintivas em face de dificuldades complexas. Será satisfatório dar vazão ao desejo de vingança? Exorciza-se o medo com a ilusão penal, esperando que medidas drásticas como a pena de morte, a prisão perpétua e a tortura sejam soluções mágicas?
Percebe-se o reducionismo dessas posições infensas à menor reflexão. Primeiramente, a vingança é compreensível no sentimento de revolta de familiares da vítima. Jamais o juiz, o promotor, o advogado, o filósofo, o assistente social podem dar prevalência à primária reação taliônica do “olho por olho, dente por dente”. É o preço cobrado pela razão: dominar o instinto.
Depois, a pena grave não intimida apenas por ser grave. Isso a História ensina. Voltaire relata que em França, nos meados do século 18, havia muitos assaltos às carruagens nas estradas. Resolveu-se punir os assaltantes com a morte pela roda, sofrimento cruel, em que se despedaçam os membros aos poucos. Uma morte lenta e dolorida, tal como agora se chega a sugerir. Diz, então, Voltaire ter havido no primeiro mês da cruel ameaça redução dos assaltos, que voltaram depois ao número anterior. Entre nós, a Lei dos Crimes Hediondos, de 1990, teve como conseqüência o aumento vertiginoso dos delitos que se passara a punir gravemente.
Beccaria, em 1764, já prodigalizava que o importante não é a gravidade da pena, mas sim a certeza de sua aplicação. A ameaça penal constante da lei paira num universo distante. Tão-só a efetividade da aplicação concreta da lei, em pelo menos 20% dos fatos, pode prevenir, em parte, o delito.
Como, então, enfrentar a questão da criminalidade? Em 2000 foi entregue ao Ministério da Justiça um Diagnóstico do Sistema Criminal, realizado por comissão que presidi. Destaco as seguintes análises: ineficiência policial, ausência do Estado nas periferias das grandes cidades, banalização da vida e cotidiano violento nos bolsões de pobreza dos maiores centros urbanos.
A ineficiência policial revela-se pela descoberta de autoria de roubos em apenas 2% dos casos. Faltam meios de apuração da autoria, há ausência de cruzamento de dados e de análise do modus operandi do delito. Se não houver flagrante delito, não há processo. A impunidade impera.
Na minha breve passagem pelo Ministério da Justiça, planejamos um Boletim de Ocorrência nacional, com dados a serem informatizados, bem como a utilização de verbas do Fundo de Telecomunicações para unificar a identificação e as informações criminais no Brasil. Com tristeza, vi depois o abandono do projeto.
A ausência do Estado se verifica em todos os setores básicos, mas principalmente na falta de acesso à Justiça. O Brasil é o país das grandes cidades, dos aglomerados nas periferias ocupados por pessoas vítimas da mais profunda orfandade. O juiz e o promotor estão a quilômetros de distância. A polícia abusa do poder e como única autoridade presente não ouve e muito menos resolve os problemas sociais que lhe são apresentados.
Estabeleceu-se no Ministério da Justiça o programa Indústria da Paz, em conjunto com a CNI, para ter estagiários de psicologia e de serviço social atendendo os problemas sociais levados a uma delegacia. Esse programa não teve continuidade. Igualmente, é importante a criação dos Centros Integrados de Cidadania nas periferias das cidades, onde haja juiz, promotor, advogados, Polícia Civil e Militar, assistente social, psicólogo. A Justiça próxima ao povo é um grande instrumento de paz social.
É necessário promover espaços de sociabilidade. Foi proposto aos Ministérios da área social um trabalho conjunto para transformação das escolas em centros comunitários. O projeto paralisou-se. No Jardim Ângela a criminalidade decresceu a partir do programa Criança Esperança, dando lazer, esporte e integração social.
Os centros de convivência visam a ensinar que a violência não é a única linguagem, em especial para as muitas crianças vítimas de agressões dentro do lar.
Se mudanças legislativas são necessárias, mais importantes são medidas, as mais diversas, de política criminal de cunho social, rejeitando as reações primárias instintivas que facilmente seduzem do homem simples ao intelectual.