Sem trava na língua
"Na tradição brasileira, os políticos ocultam
opiniões polêmicas para não perder voto.
Por isso, é um alento ouvir um governador
dizer claramente que defende a legalização
do aborto e das drogas"
O governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho, é um homem cheio de idéias. Desde que assumiu seu posto, e sobretudo depois do assassinato brutal do menino João Hélio, o governador não tem fugido de temas polêmicos. Na semana passada, afirmou que o país precisava debater a legalização das drogas e do aborto. Ficou parecendo que o governador, bem ao estilo das raposas políticas, estava saindo pela tangente: não disse que era a favor de legalizar drogas e aborto; disse apenas que era a favor do debate.
A novidade é que não é nada disso.
A seguir, confira a clareza com que o governador aborda as duas idéias:
O SENHOR DISSE QUE A SOCIEDADE PRECISA DISCUTIR A LEGALIZAÇÃO DAS DROGAS. MAS O SENHOR É PESSOALMENTE A FAVOR DA LEGALIZAÇÃO DAS DROGAS?
Sou a favor da legalização das drogas.
O SENHOR SE REFERE A DROGAS LEVES?
Não. Sou a favor da legalização de drogas pesadas, inclusive. A relação custo-benefício da proibição das drogas tem sido dramaticamente negativa, com milhares, talvez milhões, de pessoas morrendo no Brasil, na América Latina, na África. Claro que o Brasil, sozinho, não pode legalizar as drogas, sob pena de virar uma ilha de consumidores. O ideal seria que o governo dos Estados Unidos entrasse corajosamente nesse assunto. No governo de Bill Clinton, até existia um começo saudável de debate. Com Bush, isso acabou.
O SENHOR TAMBÉM AFIRMOU QUE A SOCIEDADE PRECISA DEBATER A LEGALIZAÇÃO DO ABORTO. MAS QUAL A SUA POSIÇÃO PESSOAL?
Defendo claramente a legalização do aborto.
O SENHOR NÃO TEM RECEIO DE PERDER VOTOS, EM ESPECIAL ENTRE RELIGIOSOS?
Quando propus que a Previdência do Rio pagasse pensão a casais homossexuais, os religiosos me diziam que eu jamais seria reeleito. No ano seguinte, fui eleito senador com 4,2 milhões de votos, a maior votação da história do Rio.
O governador acha que a legalização do aborto poderia ter no Brasil o mesmo efeito colateral que teve nos Estados Unidos – o de reduzir a criminalidade. A relação está no livro Freakonomics, do renomado economista Steven Levitt. Ele diz que o aborto, aprovado em 1973, impediu o nascimento de filhos indesejados, em geral pobres e de mães solteiras, que, pelo ambiente familiar desestruturado, tinham maior possibilidade de se envolver com o crime. Como não nasceram, vinte anos depois a criminalidade nos EUA caiu. "Estou de acordo com Freakonomics", diz o governador – embora, é claro, nem ele nem ninguém defenda legalizar o aborto como medida de combate ao crime.
Na tradição brasileira, os políticos escondem opiniões polêmicas para não perder voto. Por isso, é um alento ouvir um governador dizer claramente que defende a legalização do aborto e das drogas.