Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, março 16, 2007

A América e os americanos João Mellão Neto



Artigo -
O Estado de S. Paulo
16/3/2007

Alguns anos atrás, quando era deputado federal, ao desembarcar em Brasília, volta e meia me deparava com um gigantesco avião cargueiro C-5 Galaxy, com a bandeira dos Estados Unidos, estacionado na pista do aeroporto. Procurei saber o que ele fazia ali. Fui informado de que vinha da América a cada 15 dias para abastecer a Embaixada dos Estados Unidos. Trazia de tudo. Até mesmo papel higiênico e água mineral, porque os funcionários da representação americana, por questões de segurança, não podem comprar nada no mercado local. Indaguei se se tratava de alguma implicância com o Brasil ou mesmo com os países do Terceiro Mundo. Não. Esse é o padrão seguido por todas as Embaixadas americanas ao redor do mundo. Várias dezenas de aeronaves como aquela alçam vôo todas as semanas com destino a todas as nações com que os Estados Unidos mantêm relações diplomáticas. Achei um exagero. Os americanos me informaram que aquele era o custo que tinham de pagar pelo fato de sua nação ser a mais rica e poderosa do planeta. E isso foi bem antes do 11 de Setembro de 2001. Acredito que, atualmente, as precauções sejam ainda maiores.

Muita gente, aqui, no Brasil, se queixou do imenso aparato de segurança montado para a visita do presidente George W. Bush a São Paulo. Para mim, não foi surpresa nenhuma. Quando o então presidente Bill Clinton veio ao Rio de Janeiro, uns dez anos atrás, a imprensa, Rede Globo inclusive, também fez severas críticas ao esquema montado, quase gerando um incidente diplomático. Clinton, como Bush, tirou de letra. Jogou futebol com Pelé numa favela e foi aclamado por todos. Ocorre que, nos Estados Unidos, a pessoa do presidente é considerada propriedade do Estado. Mesmo que ele queira, não pode dar palpites na sua segurança e muito menos relaxá-la. Afinal, o que essa nação tem de especial? Por que ela é tão diferente das outras? Por que razão é tão odiada e, paradoxalmente, tão imitada, em todos os cantos do globo?

É muito fácil ser antiamericano em qualquer lugar, principalmente quando a América é governada por alguém tão polêmico e belicoso como Bush. Em toda a História dos Estados Unidos, nunca antes a nação entrara em guerra sem ter sido atacada ou provocada. O caso do Iraque é diferente. Tratou-se de uma decisão isolada e unilateral do governo, contrariando, inclusive, o Conselho de Segurança da ONU. Bush, hoje, paga um alto preço, em popularidade interna e externa, por seu desastrado ato.

Embora deplore atitudes como essa, de Bush, jamais me perfilei ao lado dos que culpam os Estados Unidos por tudo de errado que acontece no mundo. Eu não odeio a América. Ao contrário. E, quanto melhor a conheço, mais aumenta a minha admiração. O povo americano não chegou ao topo do mundo por acaso. Há inúmeras características, em sua sociedade, seu sistema de crenças, seus valores e suas convicções, que lhe permitiram ultrapassar todos os demais e erguer a maior nação da Terra. Para entender como tudo isso se deu é obrigatória a leitura de pelo menos três livros que retratam a saga e o caráter americanos em épocas distintas.

O primeiro é o festejado A Democracia na América, escrito no início dos anos 1800 por um jovem e perspicaz filho da nobreza francesa, Alexis de Tocqueville. Acostumado com a cultura de privilégios de seu país, ele não esconde a sua estupefação ao conhecer a aparentemente caótica estrutura social da América, uma jovem nação onde todos eram absolutamente livres e ninguém portava nenhuma vantagem em razão de seu berço ou posição social.

Como a nação funcionava, então? Segundo Tocqueville observou, os americanos eram o povo mais individualista do mundo. Cada um cuidava de si, pouco se importando com os problemas ou desventuras de seus vizinhos. Mas, por outro lado, eles tinham um senso comunitário jamais visto. Quando surgiam problemas ou dificuldades que ameaçassem a todos, cada um sabia dar a sua cota de sacrifício e esforço para superar o problema “sem hipocrisia ou belas palavras”, notou o autor. Na Europa, ao contrário, muito se falava e se escrevia sobre a solidariedade e a fraternidade humanas, mas ninguém estava disposto a ceder em nada.

Outro livro, escrito cem anos depois, é A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, de autoria do respeitado Max Weber e considerado pelos críticos “a obra mais importante do século 20”. O sociólogo alemão escreveu-o logo após a sua primeira visita à América, em 1904. Para Weber, contrariando Marx, o capitalismo tinha sólidas bases morais e mesmo religiosas. Lembrando que o calvinismo, a tendência mais rígida do protestantismo, tinha presença muito marcante no sistema de crenças dos americanos, ele concluiu que o sistema capitalista só poderia funcionar a contento numa sociedade que cultuasse valores tais como o trabalho diligente, a palavra honrada a qualquer preço, a honestidade, a confiança no próximo e o fiel cumprimento dos tratos e contratos. Esses valores, por sua vez, criavam instituições confiáveis e com isso todos prosperavam. O logro, o engodo e a má-fé não tinham espaço para crescer, já que eram repudiados por todos.

Mais recentemente temos a brilhante obra de John Steinbeck, Prêmio Nobel de Literatura de 1962, A América e os Americanos. Steinbeck, o renomado autor de As Vinhas da Ira, é o norte-americano que melhor entendeu e decifrou o caráter de seu povo, as suas fraquezas, os seus valores e mesmo as suas contradições. Vale a pena ler esse ensaio. Segundo suas palavras, de tudo isso surgiu algo que é único no mundo: os Estados Unidos.

Nós, latinos, podemos amar ou odiar a América. O que não podemos é menosprezá-la.

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