Artigo - Jarbas Passarinho |
O Estado de S. Paulo |
6/2/2007 |
O presidente da Câmara, deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP), médico, diagnosticou: 'A página da crise já está virada, é da legislatura passada.' Não só do Legislativo, diria eu, mas do Executivo também. A um ano e meio das eleições de 2006, a crise estourara. A maior facção do PT, conhecida como Articulação, da qual sempre o 'companheiro Lula' foi o 'líder máximo', dirigia o partido, ocupando todos os postos relevantes da Comissão Executiva. A Nação parecia altamente indignada ante a desfaçatez da improbidade e do cinismo das explicações, que agravavam a responsabilidade pela fraude. O flagrante televisionado do honrado recebedor de propina, nos Correios, permitiu evidenciar os primeiros sintomas da infecção generalizada, cujo desdobramento deixa a marca mais imoral da História da República. Vulgarizou-se um neologismo: mensalão. Tradução: mensalmente ou não, notáveis pais da Pátria se davam ao cansativo ofício de ir a determinado banco ou mandar terceiros de sua plena confiança receberem em seu nome uma achega aos seus parcos salários. Ou, ainda melhor, recebiam, das mãos de uma gentil secretária de um certo Marcos Valério, envelopes recheados com a moeda que silencia a frágil consciência dos venais. De um deles, representado por pessoa de sua família, disse que os R$ 50 mil recebidos se destinavam a honrar os honorários devidos à consulta de um ginecologista, cujo consultório ficava no mesmo edifício do banco. Melhor fora para um proctologista. Por que e para quê a propina? Não confundir a palavra no sentido vulgar brasileiro, porque, em Portugal, propina é o nome decente da mensalidade escolar privada. Aqui serviu à atividade privada dos 'mensaleiros', ao pagamento do voto dos que aprovavam os projetos de lei do governo, alguns até para mudar norma constitucional. Diriam seguir um precedente histórico, do incipiente legislativo britânico, o whip, na Câmara dos Comuns, séculos passados. Parlamentar era encarregado de conferir a presença e o voto dos seus pares e, tão logo confirmado, encaminhava o fiel votante a passar na tesouraria. Isso se perde nos arcanos do tempo. Mudou a missão do whip. Visitando o Senado norte-americano, deparei-me com o gabinete do whip, com o nome gravado na porta de entrada, mas a função é garantir a presença dos seus companheiros de partido nas sessões plenárias, sem passagem por nenhuma tesouraria. Quando líder do PDS no Senado, meu whip foi o íntegro e saudoso senador Jutahy Magalhães. Ele coordenava as vagas em aviões comerciais, passava-as aos senadores do PDS, para evitar atrasos ou ausências. O ministro da Justiça, grande penalista mais que ministro, deu a receita mágica: em vez de propina, tratava-se de caixa 2, que o presidente da República, representando o Brasil em Paris, disse a uma jornalista desconhecida ser tal expediente - e é verdade - tradicional nas eleições brasileiras. Disso Sua Excelência deve saber muito bem, porque disputou eleições como candidato a presidente por quatro vezes. O governo petista, que tudo fazia para impedir qualquer comissão parlamentar de inquérito (CPI), providenciou com parlamentares 'flexíveis' uma para investigar o crime desmoralizado pela tradição, o caixa 2. Eles cumpriram a missão indecorosa, com a maestria dos áulicos bons prestadores de serviços. Sem relatório final aprovado, concluíram que não houve mensalão, somente o quase inofensivo e salvador caixa 2. Os escândalos sucederam-se rapidamente. Desabou a popularidade do presidente. Nas pesquisas, caíra dos 80% do início do governo para 20%. A experiência de política sindical lhe indicou silêncio temporário. Logo se seguiu a desculpa de que nem o criminalista imaginaria: 'O presidente de nada sabia', mesmo de quem ocupava sala ao seu lado, no Palácio do Planalto. 'Fora traído', disse, constrangido. Homem de princípios, porém, nunca delatou o biltre. Concedeu penosamente demissão em carta afetuosa de bem-querer a suspeitos prestigiosos. Mais tarde, apascentado talvez, mas conhecedor da natureza humana, perdoou a traição: 'Errar é humano.' Voltou, impávido, aos improvisos. Generoso, aumentou o número de milhões de famílias beneficiadas pela soma da Bolsa-Escola, do Auxílio-Alimentação e do Vale-Gás, já existentes, que classificava de esmolas. E o fez tão bem que se reelegeu com 58 milhões de votos. E assim quiseram 64% dos eleitores que sabem julgar os que nos dirigem. Machado de Assis, pela boca de Quincas Borba já sentenciou: 'Ao vencedor, as batatas.' Em todas as atividades humanas se enfrenta um dilema: distinguir o que é moralmente lícito e o que é moralmente ilícito, sustenta Norberto Bobbio. A Maquiavel, no esplendor do Renascimento, prefere citar a peça de Sartre As Mãos Sujas, em que um dos seus personagens proclama, enfático: 'Aquele que se envolve numa atividade política terá por força que sujar as mãos, de lama, mas também de sangue.' Amigos acrescentaram: os fins justificam os meios. Reforça Bobbio com a ética de Croce: 'Só os tolos exigem que o político seja honesto.' Bobbio concorda: 'Não existe lei moral que não preveja exceções.' Está apto, pois, o deputado a presidir a Casa e receber de volta os 'sanguessugas' e os 'mensaleiros', que já o ajudaram a eleger-se. Também o mesmo se dá com Lula: perdeu Heloísa Helena e Chico Alencar, mas ganhou Paulo Maluf, Delfim Netto e José Sarney. Reelegeram Lula 58 milhões de eleitores. Consagradora exceção da lei moral. Ficar contra eles é ser 'inimigo do povo', como no jargão de Stalin. Afinal, 'a ética política é a ética dos resultados, e não dos princípios'. |
Entrevista:O Estado inteligente
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terça-feira, fevereiro 06, 2007
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