O Globo |
7/2/2007 |
Coincidiu que eu tenha topado com notas de campo sobre o modo como os sertanejos do velho estado de Goiás falavam dos seus patrões, com a eleição para presidente da Câmara. Nos meus velhos registros feitos nos anos 60, encontro um verdadeiro (e até certo ponto assustador) credo da patronagem. O mundo é comandado por patrões. O patrão tem o comando das relações sociais com seus subordinados. Ele tem o direito a todas as ambigüidades. Todos são, simultaneamente, patrões e clientes, doadores e devedores. O poder é sempre diferenciado e se manifesta parceladamente, daí a dificuldade de mudar as coisas, pois, para cada dimensão da vida, há um patrão. Sem um patrão que dê ordens e trabalho, a sociedade emperra. E por aí segue esse material antiquado, colhido casualmente em pleno sertão goiano enquanto eu vivia com os índios Apinayé. Para alguns, o exercício é fruto de um antropologia conservadora. Afinal, o Brasil mudou. Hoje temos uma democracia madura e consolidada, ao passo que meus inquéritos foram realizados quando o país não havia dado o salto revolucionário do governo do PT e, junto do "mensalão", instituído esse maravilhoso sistema de "bolsas" de todos os tipos para todos os pobres. Sistema que, no seu formidável afã de promover o fim da desigualdade, esquece-se de promover a igualdade e, assim, confirma a velha e boa hierarquia, asseguradora do lugar de cada um no sistema. Para outros, falar de patrões seria uma idealização do "Brasil tradicional" a ser devidamente soterrado pelo neoBrasil tocado pelo voto e pela novidade do "lulismo", e não mais por meio de um papel ultrapassado, com os seus personalismos centralistas e demagógicos. Conforme sabemos, os velhos sistemas baseados na patronagem têm sido devidamente transformados a partir das urnas, tanto aqui como na Venezuela, na Bolívia e no Equador. Como, pois, comparar dados colhidos numa meia dúzia de miseráveis povoados sertanejos com o que vai por esse Brasilzão contemporâneo? Brasil global, que nada mais tem a ver com conceitos essencialistas (sociedade, cultura, estrutura...) e esquemas teóricos virgens da experiência planetária que promove mais indiferença, menos contraste e uma liquidez tão aquática e quanto as águas imundas, em constante processo de despoluição, da baía de Guanabara? Para os pensadores residentes em locais parecidos com o Rio de Janeiro, como Harvard, Princeton, Oxford e Berkeley, o mundo já não cabe mais nos conceitos fechados e sinalizadores de diferenças extremas. Poder comer chinês, tailandês, brasileiro, etíope ou indiano; encontrar nas esquinas gente falando essas línguas exóticas, não universais, como o "nosso" natural inglês, dá testemunho concreto desse mundo misturado e sutil que já não cabe mais nas descrições ortodoxas. Hoje, conforme gostava de dizer Clifford Geertz, andamos as apalpadelas, sondando colagens. Em Princeton Junction, é claro. Porque no Rio de Janeiro, e, aqui, em Niterói-sur-mer, onde resido, nós nos borramos de medo dessas diferenças "sutis" e "líquidas" que, encapuzadas e armadas de pistolas, levam-nos os rolex e os i-pod pós-modernos, quando não nos roubam a vida. Tudo isso debaixo dos olhos de um novo governo, e de pelo menos quatro modalidades de polícia: a militar, a civil, a federal e a rodoviária - essa polícia que o motorista bandalho sempre sabe onde ela está, porque é eficientemente parada! Aí, sim, somos pós-modernos e temos variedade, sutileza e, sobretudo, liquidez. Ler o mundo preto-no-branco é uma forma de burrice tão grande quanto confundir desenfreado consumismo cosmopolita com ausência de fronteiras. É, então, com ressalvas que lembro o papel básico dos elos entre patrão e empregado que encontrei de modo tão forte no interior de Goiás. Ele talvez ajude a entender, ainda que seja por "default", como se diz hoje em dia, alguns processos em curso nesse nosso inesgotável neoBrasil do PAC. Primeiro, uma nota sobre a idéia de governo. Diferentemente de nós, esses sertanejos diziam que o "governo" era uma entidade onipresente, sempre ao lado dos pobres, embora fosse ausente e inoperante. O governo era feito mais de "patrões" do que de partidos. E elaboravam: "Todos têm patrão, nem que seja por um dia. Vêm baixando desde o marechal, o Papa e o presidente. O do presidente são as grandes firmas do Rio e de São Paulo. Patrões têm dinheiro, terra, gado. Sua grandeza se mede pelo número de empregados, clientes e cabras que possuem. Onde existem duas pessoas uma deve ser patrão. Ser patrão é também uma questão de comportamento. Os "bons patrões" cuidam dos seus clientes. A eles se deve absoluta lealdade, o que tornava complicado compreender situações onde muitos patrões ocupavam uma mesma arena política. Daí a visão da política "lá de Brasília" como um desperdício de tempo e de dinheiro, porque, se todos queriam resolver os grandes problemas nacionais, por que esses problemas não eram resolvidos? Como se vê, essas são questões superadas que pertenciam a um antigo Brasil cheio de patrões, um país obviamente pré-pós-moderno. Assim seja. |
Entrevista:O Estado inteligente
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quarta-feira, fevereiro 07, 2007
Os patrões do Brasil - ROBERTO DaMATTA
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