Entrevista:O Estado inteligente

domingo, fevereiro 04, 2007

O Estado já era ele

À primeira vista, a cabeça de um ditador é sempre um enigma. O venezuelano Hugo Chávez, por exemplo, já tinha tudo o que poderia desejar para fazer o que bem entendesse em seu país, como um déspota - no seu caso nem ao menos esclarecido - ou um monarca absolutista à maneira de Luís XIV, o Rei Sol da França pré-revolucionária, que dizia, e os fatos lhe davam razão, que o Estado era ele. Pois, com o Judiciário domado, o Congresso cem por cento governista (porque a oposição cometeu o erro crasso de boicotar as eleições legislativas de 2005), o Banco Central manietado e a mídia eletrônica virtualmente reduzida à submissão, o Estado venezuelano já era ele, Hugo Chávez. O caudilho de Caracas detinha o monopólio integral do poder antes mesmo da aprovação, por unanimidade - de que outra forma poderia ter sido? - e em praça pública, para escarnecer ainda mais da idéia de uma instituição parlamentar independente, do projeto da Lei Habilitante.

A lei - termo que na Venezuela atual só pode ser utilizado no sentido pervertido de lei do mais forte - outorga ao coronel golpista de outrora, convertido em mentor do socialismo mundial, a prerrogativa de governar por decreto por 18 meses. Mas de há muito estava ao seu alcance tudo o que poderá fazer doravante, devidamente habilitado: mudar as instituições de governo, controlar o serviço público, criar “um novo modelo econômico e social”, definir o orçamento e a política monetária, criar impostos, alterar a divisão político-territorial do país, reorganizar as Forças Armadas, fixar normas para a concessão de serviços públicos e regulamentar a exploração de petróleo e gás. Aliás, essa não é a primeira vez que Chávez se concede poderes excepcionais. Em 2001, instrumento similar permitiu-lhe decretar 49 leis, entre elas as de Hidrocarbonetos e Terras. Bem pensadas as coisas, porém, a nova Lei Habilitante há de ter a sua serventia.

Ela consiste no próprio espetáculo de sua aprovação - um marco na consolidação de uma autocracia populista que tem o apoio efetivo da maioria dos venezuelanos, haja vista a reeleição de Chávez sem fraude nem violência. O ritual representa também um rugido amedrontador para acoelhar a já desestruturada, ineficiente e praticamente acéfala oposição. Dito de outro modo, o circo da votação da lei integra o conjunto de atos de liturgia política e de culto à figura do numero uno que assinalam a trajetória, que ele pretende inexorável, do autoritarismo ao totalitarismo. Uma jornalista ouviu de um partidário de Chávez, em dado momento da “sessão aberta” do Congresso, que durou mais de 3 horas, a seguinte enormidade: “Um homem que chega ao desprendimento de pegar em armas para lutar por um povo e conseguir a felicidade de um povo merece não só poderes especiais. Merece um lugar no céu.” É para fortalecer o fanatismo dos já fanatizados e intimidar os de mente sã que os ditadores mandam fabricar eventos de mobilização de massas.

Essas operações exigem sempre a violentação da verdade, invertendo fatos, conceitos e valores. Foi o que fez na quarta-feira em Caracas o vice-presidente Jorge Rodríguez, como representante do chefe que o nomeou recentemente (isso era já permitido na Venezuela pré-chavista), na cerimônia de sua coroação metafórica. Disse ele: “Ditadura é o que havia antes. Se alguém vir traços ditatoriais (na Lei Habilitante) serão os de uma ditadura da democracia verdadeira, que se instaura para sempre na Venezuela.” O escritor George Orwell, o do livro 1984, devia estar vivo para ver até que extremos os déspotas, os seus áulicos e propagandistas são capazes de levar o “duplipensar” de que ele falava. “Este é um momento que pode ser decisivo para a história da América Latina”, exultou uma professora universitária chavista em meio às cenas de abjeção política. O terreno, pelo menos, é fértil. Na véspera da farsa caraquenha, uma turba atacou o Congresso equatoriano, pondo para correr todos os parlamentares. Ali, por sinal, o presidente neochavista Rafael Correa não tem apoio algum, porque o seu partido boicotou o pleito. A reação de uma autoridade de Quito foi ominosa: “Lamentamos os incidentes, mas a oposição não deveria brincar com a vontade popular.”

Ao que parece, ela não brincou, dispondo-se agora a aprovar a Constituinte que o presidente deseja.

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