Eu estava passando pelo corredor, nos idos de 1984, quando ouvi uma risada do meu pai, dentro da salinha de TV, com o jornal à mão. Quis saber o que havia de tão engraçado no artigo que ele lia. “O papa não sossega o periquito”, leu em voz alta, ainda rindo. Era uma frase de Paulo Francis no Diário da Corte, comentando as andanças de João Paulo II. Eu não sabia, mas ali estava uma síntese do que fazia Paulo Francis ser tão lido, ainda que para ser odiado (seus detratores também riam, quando ninguém estivesse olhando): o humor coloquial e exagerado para tratar de um assunto “sério”, sério antes de mais nada para ele, ex-seminarista que morreu - há exatos dez anos - com a idéia de escrever um livro de ensaios sobre pensadores católicos, como Kierkegaard.
Dali em diante virei leitor de tudo, não só de tudo que ele escrevia, mas também dos livros que já escrevera e dos livros que recomendava ler. Sua coluna era variada, culta e direta como a de ninguém mais na imprensa brasileira, e ele comunicava um prazer com a vida intelectual que nenhum professor da escola conseguia ou poderia. Também podia ser irritante de forma única - que história era aquela de menosprezar as passeatas pelas “Diretas Já” aonde íamos esperançosos? -, mas era tudo menos monótono. Sem papamóvel algum, Paulo Francis não sossegava o periquito.
Na sala de aula havia três grupos: os CDFs, que só pensavam nas notas e não sabiam jogar bola nem paquerar garotas; a turma do fundão, que só queria fazer bagunça; e a maioria “silenciosa”, a zona cinzenta, que não era nem uma coisa nem outra - muito menos as duas. Lendo as críticas de Francis ao “espírito de patota” do brasileiro, ao maria-vai-com-as-outras nacional, percebi exatamente do que falava. Autores muito maiores como Dostoiévski, Machado de Assis e Mark Twain já tinham me despertado, mas, que diabos, Francis era um jornalista falando disso no contexto da realidade atual e local, duas vezes por semana (sem contar os outros textos), numa folha dobrada na salinha de TV. Que ele não tenha realizado o sonho de ser um ficcionista como esses, na verdade, apenas ampliava seu jornalismo, não o diminuía.
Francis, como outros críticos culturais, me dava o impulso de pensar por minha conta e risco, de ler sozinho e calado e não por meio de um padre ou douto. Mais tarde, entendi que para muita gente ele era um oráculo, um guru, e essa gente formava a patota de seus admiradores fanáticos, que concordavam com tudo que ele dizia e, pior, que por meio dele faziam a catarse de seus preconceitos. E quem discordava dizia não gostar, como se só possamos admirar quem ecoa o que achamos de tudo. Isolado mais uma vez, eu discordava até em questões fundamentais - seus elogios a Collor e Maluf, sua dificuldade de gostar de Conrad e Graciliano, a besteira de dizer que a ciência não descobriu a cura do resfriado enquanto “nós, humanistas, escrevemos a Odisséia”, os insultos levianos - e continuava admirando intensamente.
Havia então um problema de método? Alguns acham que sem esses defeitos ou exageros Francis não seria Francis, que seu texto não teria o mesmo colorido. Mas o próprio Francis era a melhor resposta. Primeiro, porque ele reconhecia que tinha dado voz ao “saltimbanco” dentro de si, para poder sobreviver com a liberdade necessária, contra o que definiu perfeitamente como “patrulha da mediocridade”. Segundo, porque, ao contrário da maioria dos intelectuais brasileiros, ele jamais escondeu suas fontes - e bastava ler um pouco de Bernard Shaw, George Jean Nathan, George Orwell, Aldous Huxley e Evelyn Waugh para ver como é possível ter um estilo cromático sem ser tão hiperbólico, atrevido sem ser tão destemperado. Nem toda conversa boa é de bar.
Acontece que Francis, autor da frase “Intelectual não vai à praia, intelectual bebe” (atribuída erroneamente a Jaguar, assim como a definição de filmes do Cinema Novo como “O filme é uma m..., mas o diretor é genial”), não era apenas divertido e divergente. Só fazia tipo até certo ponto e por autodefesa. Seu desdém pelo atraso brasileiro vinha do afeto que o impacto do golpe militar de 1964 encerrou; seu elitismo, seu desinteresse por tudo que envolvesse “a massa” (TV, futebol, MPB), era por gosto, não por vaidade (sempre foi mais CDF do que fundão); e havia uma angústia, um mal-estar com a humanidade, sob a figura folclórica que aparecia na TV. Tudo isso era banhado no humor carioca dos bons tempos, debochado e onomatopaico (pfui, sifu, duca), e dava um resultado que ninguém pode repetir.
Ele não dizia o contrário dos outros por dizer; tampouco mudava de idéia por conveniência. Sua conversão ideológica, exacerbada como sempre nele, foi trabalhosa e autêntica. “Perdi muito tempo com política”, me disse, e que tenha me ajudado e me dado sua amizade a esse ponto - depois de ter sido o responsável por, sei lá, um terço das minhas referências culturais - é outra prova de que não era tão arrogante. Tentei agradecer, pessoalmente e na forma de dois livros, mas nunca é demais. Francis, que me estimulou a ver até mesmo os defeitos de Francis, era maior que seus inimigos e, mais importante, está vivo em seu estilo e sua coragem. Waaal...
RODAPÉ
É muito interessante o Arquivinho de Otto Lara Resende. A coleção da editora Bem-te-vi, que já homenageou Vinicius de Moraes e Helio Pellegrino, é uma caixa que traz itens diversos como fac-símiles de cartas, minilivros biográficos, folhetos com textos, álbuns de fotos, reproduções de pintura, etc. No caso de Otto, além de uma antologia de suas frases divertidas, especialmente as auto-irônicas (“Não sou de me levar adiante”, “Desdenho a importância e temo o ridículo”, “Há em mim um velho que não sou”), o destaque é um DVD com as entrevistas que fez com Vinicius, Nelson Rodrigues, Pedro Nava e os “quatro mineiros” (ele, Pellegrino, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos). Bons tempos em que a TV tinha entrevistador e entrevistados (como Paulo Francis) com tanto talento e “dor de mundo”...
UMA LÁGRIMA
Para Sidney Sheldon, que morreu aos 89 anos. Linguagem simples, ritmo veloz e detalhes informativos faziam o sucesso de sua narrativa; parece fácil, mas não é. Não sei se ler Sheldon faz você passar depois para livros melhores, mas pelo menos ele não defendia causa nenhuma. Como a maioria dos best-sellers, no entanto, já tinha passado de moda sem chegar à posteridade.
A ARTE DE EXPOR
Vale a pena ver, no belo Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, a exposição do anglo-indiano Anish Kapoor. Gosto dele pelo mesmo motivo que me faz gostar de Richard Serra, Regina Silveira ou Amélia Toledo: basta um recurso para que a obra crie uma perturbação dos sentidos. É meu tipo de instalação preferido: límpida, antidiscursiva, precisa. Minha sala preferida está no segundo andar: o Espelho Duplo, em que você tem uma pequena área de eco bem ao centro do eixo, enquanto sua imagem se multiplica e distorce no jogo entre as superfícies curvas dos espelhos. (Não pude ver a obra Ascensão, no Vale do Anhangabaú, em manutenção na terça.) Kapoor recorre à ciência para mostrar como nossos sentidos são móveis: o uso de pigmentos e luzes e a ausência de contornos abrem espaço para a ilusão; suspendemos o juízo e depois conseguimos esclarecer o que experimentamos. Como diria Robert Hughes, é um tiro só, mas direto no alvo.
DE LA MUSIQUE
Alguns escrevem para notar que o parceiro de Tom Jobim era Newton Mendonça. Outros perguntam o que quis dizer que algumas letras iniciais da bossa nova “não primam pela sofisticação”. Bem, “Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça” ou “Pois há menos peixinhos a nadar no mar do que os beijinhos que eu darei na sua boca” não são versos dos mais elaborados... Mas, como escrevi, essas letras “estão a serviço de uma música que reinventa a relação entre melodia, harmonia e ritmo”. Quer elogio maior?
No Teatro Fecap, na semana passada, Rosa Passos traduziu essa sofisticação musical como poucos. Ela fez um show de jazz para a MPB, com homenagens a Tom Jobim e Elis Regina. O quarteto que a acompanhou - Celso de Almeida à bateria, Fábio Torres ao piano, Vinícius Dorin ao sax e clarineta e Paulo Paulelli ao baixo - é muito bom, de técnica refinada e improvisos inteligentes. Os standards de Tom como Eu Sei Que Vou te Amar, Dindi e Águas de Março ganharam arranjos novos, ousados, e ao celebrar Elis a voz de Rosa se soltou e desceu aos graves como se demonstrasse de uma vez por todas que não é João Gilberto de saias. Ela se declarou “um músico que canta”, mais que uma cantora; é verdade. E cantar jazzisticamente é para poucas.
POR QUE NÃO ME UFANO
Com o Congresso praticamente na mão - com Collor, Sarney, Clodovil, Palocci, Genoino e outras eminências -, os ótimos ventos da economia mundial e a popularidade ainda alta, mesmo depois de tantos escândalos e fiascos, Lula deve estar pensando que o PAC é suficiente para lhe garantir o nome na história ao lado de JK. Quanto maior o salto...