Entrevista:O Estado inteligente

domingo, fevereiro 11, 2007

Há vida fora da servidão

ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA

Uma presença sem contornos, indefinida, assombra nossas vidas. Apesar do maior bem-estar material, da liberdade de que gozam os indivíduos, supostamente livres das religiões ou das ideologias, apesar da ciência que promete a cada um dia uma vida mais longa, há uma insatisfação que paira no ar. Por que será? Cada um de nós é um anti-herói do nosso tempo. Nos últimos vinte anos, do marketing mais primário à mais sofisticada produção intelectual, todos colaboraram para convencer a cada um que seu sucesso ou fracasso só dependia de si mesmo ou do fracasso do outro, o competidor. A argumentação era convincente quando se rompiam, ao mesmo tempo, os laços de pertencimento — família, emprego, nação —, levando consigo, de roldão, as solidariedades coletivas.

A globalização virou palavra mágica, responsável por todos os fatos da vida, do divórcio ao desemprego. Como uma tsunami irresistível, explica todos os fenômenos, justifica todas as iniqüidades e acaba por assumir o papel de um Deus laico, criador de um novo mundo, o mundo como ele é, no qual vivemos e lutamos pelo pão de cada dia, sabendo que inferno e paraíso são aqui mesmo, e que um passo em falso pode jogar qualquer um no abismo da exclusão.

Outro passo bem dançado abre as portas do paraíso, do bem-estar e da fortuna.

Recriou-se a noção religiosa de graça, dividindo o mundo entre os que vão para o céu ou o inferno, dependendo da capacidade que têm ou não de seguir os mandamentos, as tábuas da lei dessa nova religião.

A religião é uma leitura do mundo entre outras, com a força de se apresentar como verdade inquestionável, investida do direito de julgar, premiar ou punir. Passamos a aceitar o mundo como ele é hoje, com a mesma conformação com que convivemos com as ondas do mar, as neves do Everest ou com a lava dos vulcões. O sagrado desse mundo é o dinheiro, o bem-aventurado é o competitivo que enriqueceu.

Antimoral da história, há que enriquecer a qualquer custo. Sanguessugando, mensalando, assaltando, vendendo sentenças, drogas ou o que mais for vendável, corpo e alma.

A corrupção não é, neste mundo, um fenômeno periférico. É inerente ao espírito do tempo. Se uma aplicação financeira remunera o investidor muito mais do que pode ganhar um pesquisador que persegue a cura do câncer, que relação ainda é possível estabelecer entre o valor do trabalho e o dinheiro? Dentre os que vivem do seu trabalho, o prometido céu se transformou em purgatório. Esse purgatório é o cotidiano.

Se ao longo do século XX a vida de um operário era o protótipo da alienação, hoje a condição operária espalhase pelos altos quadros empresariais.

Quanto maior o salário, pior o stress e a insegurança. Um exército de reserva de desempregados, altamente qualificados, prontos a aceitar qualquer deslocamento ou aceleração de ritmos, paira como ameaça sobre a cabeça de quem ainda ocupa um posto.

Em nome da gestão eficiente da empresa os próprios empregados justificam sua descartabilidade, que aceitam resignados. A cultura da performance se impôs como modelo de eficiência e exerce uma pressão constante sobre os nervos de quem trabalha, envenenando o dia-a-dia. O esgotamento e o stress no trabalho se tornaram de uma banalidade aflitiva e são aceitos como a ordem mesma do mundo. Declarou-se o fim dos empregos fixos, desafiando cada um a melhorar sua empregabilidade, um passe de mágica conceitual que transforma o desemprego, fracasso de uma sociedade, em déficit de empregabilidade, fracasso de uma pessoa.

Esse deslizamento de sentido desemboca na prática malsã de transformar todas as esferas da vida em trabalho, todas as atividades em investimento: com quem você sai para jantar, os livros que lê. Gerir o seu capital pessoal como quem gere uma empresa, transformando a si mesmo em produto, agregando continuamente valor.

Mesmo a família, espaço da gratuidade, submerge alagada pela lógica econômica que se infiltra em cada gesto e escolha. Crianças ocupadíssimas, com a agenda lotada desde cedo por aulas de quase tudo, preparam-se para ser competitivas e crescem sem saber muito bem o que é um dia de folga, olhando para ontem, para as nuvens no céu, aprendendo o mundo por experiência direta sem professor nem personal trainer.

E assim vão todas as vidas se transformando em planos de carreira.

Há saída? Uma brecha, com certeza, há. É o sentimento difuso de insatisfação que, em outros tempos, se chamaria de tomada de consciência e que sempre foi o ponto de partida das transformações sociais. As férias são um momento privilegiado ou perigoso, depende do ponto de vista, em que um deslocamento do trabalho permite lembrar que há vida fora da servidão. Pode ser que, sentado na praia ou caminhando em alguma montanha, o anti-herói do nosso tempo descubra que há muitas vidas possíveis para si, para as empresas, para nossa sociedade. E pare de dizer amém ao que o está machucando.

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