Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

FGTS, a 'ovelha negra' do PAC

Cid Heraclito de Queiroz

O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), criado em 1966 pelo presidente Castelo Branco, é a maior conquista dos trabalhadores desde a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada em 1943 pelo presidente Getúlio Vargas. Por essa razão, os constituintes incluíram-no na Constituição de 1988 como um direito social dos trabalhadores (artigo 7º, III), ou seja, uma das garantias fundamentais que não podem ser revogadas ou modificadas, nem mesmo mediante emenda constitucional (artigo 60, @ 4º, IV). O FGTS é uma das chamadas cláusulas pétreas de nossa Carta.

O texto constitucional, ao se referir a institutos jurídicos longamente sedimentados pela lei, como o FGTS, o salário mínimo, as férias, o repouso semanal remunerado, tem por escopo protegê-los, com as respectivas substâncias. O FGTS, a que se refere a Constituição, é o fundo, sem personalidade jurídica, constituído com os recursos compulsoriamente depositados pelos empregadores nas contas vinculadas dos trabalhadores e gerido pelo governo federal. Para possibilitar o crédito de correção monetária e juros nas contas dos trabalhadores, os recursos acumulados no FGTS são empregados em operações de financiamento habitacional (60% em habitações populares) e de saneamento básico e infra-estrutura urbana 'complementares aos programas habitacionais', com 'rentabilidade média suficiente para cobertura de todos os custos incorridos pelo fundo e ainda à formação de reserva técnica' (Lei nº 8.036/90, artigo 13, @ 1º). As disponibilidades são aplicadas em Títulos do Tesouro Nacional.

Na reformulação da lei básica do FGTS, em 1990 (Lei nº 8.036, de 11/5/1990), no governo Collor, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, zelando pelo interesse dos trabalhadores, incluiu, no respectivo anteprojeto, um dispositivo (artigo 9º, @ 1º, parte final) segundo o qual as operações de financiamento com recursos do FGTS, centralizadas na Caixa Econômica Federal (agente operador), passaram a ser efetuadas com risco de crédito dessa entidade pública. Tal iniciativa decorreu, justamente, da noção jurídica do FGTS como garantia constitucional, a qual não poderia comportar procedimentos, ainda que autorizados por lei ordinária, que pudessem causar prejuízos ao patrimônio dos trabalhadores. A lei pode regular o funcionamento do fundo, mas não pode, de modo algum, alterar-lhe a substância, notadamente para desviar os seus recursos em favor de finalidades estranhas à sua essência.

Por essa razão, afigura-se oportuna a iniciativa de algumas centrais sindicais buscando decisão do Supremo Tribunal Federal que suspenda, por inconstitucionalidade, a recente Medida Provisória nº 349, de 22/1/2007, que autorizou o desvio de recursos do FGTS para constituir um outro fundo - de investimentos -, destinado a financiar 'empreendimentos dos setores de energia, rodovia, ferrovia, porto e saneamento', que, embora relevantes, não são do imediato interesse dos trabalhadores, como a habitação. Em outras palavras, o dinheiro pertencente aos trabalhadores financiaria investimentos que já dispõem de diversas fontes de recursos (dotações orçamentárias, BNDES, Banco do Brasil, organismos internacionais, concessões, privatizações, Parcerias Público-Privadas, etc.). Assim, o FGTS teria de resgatar aplicações em rentáveis Títulos do Tesouro Nacional para arriscá-las em obras que se arrastam há décadas.

Paradoxalmente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetou o artigo 56 da recente Lei nº 11.445, de 5/1/2007 (Diretrizes Nacionais para o Saneamento Básico), que previa o desvio de recursos do FGTS para aplicação, precisamente, em fundos de investimento em saneamento e infra-estrutura, acolhendo proposta dos ministros da Justiça, da Fazenda e do Trabalho, segundo os quais o dispositivo, 'além de desvirtuar substancialmente o escopo original da Lei 8.036, de 1990', sujeitaria o FGTS 'à deterioração de sua capacidade financeira, sem resultados positivos palpáveis'. Ora, se o fundo de investimentos previsto na MP nº 349/07 oferecesse 'resultados palpáveis', não seria necessário buscar recursos no FGTS. Bastaria recorrer ao mercado financeiro.

Por outro lado, o chamado patrimônio líquido do FGTS - parcela superior ao montante necessário para o resgate de todos os depósitos nas contas vinculadas - não pertence à União nem é riqueza sem dono, mas compõe a reserva técnica do fundo, que, por sua vez, constitui patrimônio dos trabalhadores (Lei nº 8.036/90, artigos. 2º, @ 1º, 'c', e 9º, @ 1º).

A única alteração admissível na legislação do FGTS, que não diz respeito à sua essência e todos aguardavam, não figurou na referida MP, qual seja, a revogação da contribuição de 10% sobre o montante da conta vinculada do trabalhador, na hipótese de despedida imotivada, que foi instituída pela Lei Complementar nº 110/2001, na esteira da negociação havida entre o governo e as classes trabalhadoras e empresarias, para a 'cobertura do passivo' gerado pela decisão do Judiciário, no sentido da retificação da correção dos saldos das contas vinculadas do FGTS, em face dos Planos Verão e Collor.

A MP nº 349/07 rompe uma tradição de 40 anos do FGTS, respeitada por todas as leis e por todos os governos, desde 1966: a intocabilidade dessa notável conquista social, que constitui patrimônio inalienável da classe trabalhadora e representa fator essencial à tranqüilidade das relações entre empregados e empregadores. O presidente da República, que vem ditando escorreitas lições a respeito da transparência das contas da Previdência Social, tem de ser alertado para a conveniência de revogar a malsinada MP, que, politicamente, é a 'ovelha negra' do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

Cid Heraclito de Queiroz, advogado, foi procurador-geral da Fazenda Nacional (1979-1991)

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