Vem de longe o imenso e raras vezes bem-sucedido esforço para desenvolver uma política baseada no “equilíbrio de poder” no mundo. Isso porque o natural nessas relações é outro: ou a guerra ou o Império, a submissão de todos ao poder do mais forte. Faço um breve retrospecto histórico para logo falar do lugar do Brasil no incerto mundo de hoje.
Da Paz de Westfalia, a partir da terceira década do século 17, à Revolução Francesa, ao final do 18, depois da desarticulação de poder que se seguiu ao fim da Idade Média e do domínio do Sacro Império Romano, estabeleceu-se um prolongado equilíbrio na cena internacional européia. A emergência de novos poderes e a Reforma Protestante, que rompeu os vínculos de sacralidade que a fé católica dava aos imperadores, deram lugar a um sistema de Estados de potência equivalente capaz de impor seus interesses sobre os demais e evitar que um deles quisesse alçar vôo solo. Sob a inspiração do cardeal Richelieu, responsável pela política exterior da França, o direito divino dos reis foi substituído pela raison d'État, que garantia o domínio de Estados poderosos, sem primazias.
Esse equilíbrio se rompeu com as guerras napoleônicas. Destruído Napoleão, estabeleceu-se novamente um sistema de consultas entre Estados dispostos a não guerrear entre si, com a preocupação de impedir o surgimento de novas potências com aspirações hegemônicas. Foi o tempo do chamado Congresso de Viena. Não que inexistissem guerras, mas elas obedeciam aos interesses dos Estados consorciados em manter entre si o equilíbrio de poder.
O equilíbrio europeu, entretanto, quebrou-se uma vez mais por aspirações expansionistas. Na segunda metade do século 19, a Realpolitik de Bismarck e Napoleão III desencadeou a dinâmica que, anos mais tarde, levaria à 1ª Guerra Mundial (1914-1918). O que veio depois é história mais conhecida. O fracasso da Liga das Nações, inspirada pelos valores morais do presidente americano Woodrow Wilson, o ressurgimento dos nacionalismos e dos projetos de expansão, principalmente na Alemanha, a 2ª Guerra Mundial (1939-1945), a vitória dos aliados e a criação da ONU, da qual a Liga havia sido uma espécie de embrião.
A suposição de que seria então possível um abrangente entendimento global baseado em regras de convivência logo se mostrou frágil, com a polarização crescente entre dois campos ideológicos, o do mundo sino-soviético e o do mundo ocidental, com ampla repercussão e influência sobre os conflitos regionais em todo o mundo. Sob a guerra fria, começaram a surgir na periferia novos desafiantes do sistema mundial do poder. A África liberada passou a ser palco de lutas, Cuba tornou-se um marco de resistência ao “ocidentalismo” e a Coréia se dividiu entre a do Norte, comunista, e a do Sul, aliada aos Estados Unidos.
Com a queda do Muro de Berlin, imaginou-se que teríamos finalmente um novo Império, a era da hegemonia americana. Durou pouco. Imbuídos de princípios abstratos, de ordem moral, os Estados Unidos afastaram-se de seus deveres de solidariedade para com o antigo Terceiro Mundo e se lançaram numa estratégia de domínio pela força, até mesmo nas galáxias. Desde Reagan, com exceção de Clinton, prevaleceu a idéia de que o investimento em soft power era sinal de fraqueza. A diretriz passou a ser a construção de forças armadas capazes de assegurar militarmente, em todo o globo, os interesses norte-americanos.
Com isso, os Estados Unidos não se deram conta das transformações por que passava o mundo: a emergência do Islã, os fluxos migratórios que criam redes multiculturais no mundo ocidental, o dissenso interno no Ocidente, com a Europa dividida, a Nova Europa temerosa do que resultará da reconstituição dos escombros do mundo soviético e a Velha Europa aferrada à sua prosperidade, parca em ajudas bélicas, temerosa da “contaminação” racial e cultural.
Para não falar da China, que, embora seja aliada econômica e mesmo indispensável para reciclar a imensa dívida americana, se aproxima outra vez da Rússia, agora transformada em potência energética (gás e petróleo). Ambas atuarão, daqui para a frente, com influência cada vez maior, na Ásia Central, no Oriente Médio e na África. Poderão ser fatores de equilíbrio, mas não renunciarão aos seus interesses. Nesse complicado quebra-cabeças há ainda a Índia (gigante adormecido, em suas inextricáveis castas, que desponta agora como potência econômica), um aliado necessário dos Estados Unidos para fazer frente a eventuais futuras ameaças chinesas ou islâmicas, o que explica o respaldo americano ao desenvolvimento de bombas atômicas por aquele país. Recentemente, viu-se a China lançar mísseis destruidores de satélites, sinal de que também pode destruir armas na guerra das galáxias. E tanto a China como a Rússia vendem armamento, direta ou indiretamente, aos países belicosos do Oriente Médio.
Estamos longe, portanto, da paz universal e mesmo de uma situação de equilíbrio estável. Diante desse panorama, pergunto: que papel caberá a países de poder médio, como o Brasil?
Alinhar-se fora do Ocidente (e fora de hora) poderá apenas causar males futuros. Alinhar-se automaticamente ao Ocidente tampouco é uma boa opção. Para começar, com que parte do Ocidente? Ser neutro pode ser uma opção, desde que não seja a solução dos impotentes. Então, o que fazer? Certamente o pior é cutucar a onça (melhor, as onças) com vara curta. Deixemos isso para os donos do petróleo.
Os Estados Unidos, encalacrados no Iraque, vendo crescer ao seu redor as novas-antigas potências, odiados pelo mundo islâmico, malvistos pelos africanos pobres, dependentes da muleta chinesa, mais cedo ou mais tarde - oxalá os democratas compreendam isso - precisarão de uma nova entente, menos belicosa e mais igualitária. O caminho da guerra e da mudança de regime já está perdido. Os americanos precisarão mais de uma política de contenção que de uma vitória arrasadora, que não virá.
Quem sabe o Brasil possa ter um papel que dispense armas atômicas e sonhos de potência, mas que nos torne um país mais respeitado e nos dê tempo para robustecer nossa economia, melhorar a vida de nosso povo e ganhar o reconhecimento (como fez Nehru com a Índia) de que somos uma grande democracia que exerce a liderança em nossa região, assegura nela a paz e os vínculos ocidentais, mais pelo exemplo do que pela astúcia ou pela assertividade do poder, e que pode contribuir para a emergência de uma nova ordem política mundial. Esta, sem voltar às idéias de equilíbrio de poder, deveria pelo menos evitar desequilíbrios que nos levem a novas catástrofes.
Entrevista:O Estado inteligente
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