Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Dreamgirls, com Beyoncé e Jamie Foxx

Muito soul, pouca alma

Só Eddie Murphy e a novata Jennifer Hudson, uma estrela
nata, explicam o sucesso do musical Dreamgirls


Isabela Boscov

Divulgação
Murphy, Beyoncé, Jennifer Hudson e Anika Noni Rose: canções que começam bem e terminam em gritaria

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Trailer do filme

As ambições de Dreamgirls – Em Busca de um Sonho (Dreamgirls, Estados Unidos, 2006), desde sexta-feira em cartaz no país, não são pequenas. Primeiro, o filme quer recriar a mística em torno do musical homônimo – o qual, dirigido por Michael Bennett, do também lendário A Chorus Line, estreou em 1981 e cravou mais de 1.500 apresentações na Broadway. Dreamgirls pretende também ampliar o cenário de seu modelo: não apenas reconstituir a ascensão e queda da Motown, a gravadora de Detroit que reinventou o som negro nos anos 60, como associar essas mudanças às transformações sociais que sacudiam os Estados Unidos. Acima de tudo, porém, o filme quer seduzir num gênero cinematográfico que só muito esporadicamente tem funcionado: o musical clássico, em que os personagens às vezes disparam a cantar suas falas. Dreamgirls virou um pequeno fenômeno. Mas menos porque o diretor Bill Condon tenha realizado suas ambições, e mais pela sorte de contar com a participação de uma estrela nata: Jennifer Hudson, ex-cantora de cruzeiros da Disney e ex-candidata da terceira temporada do programa American Idol – do qual foi defenestrada, ao que tudo indica, pelas mesmas razões que levam sua personagem no filme à desventura. Em resumo, ser rechonchuda e ter um vozeirão e uma presença indissoluvelmente negros.

Dreamgirls é a mal disfarçada história de como o produtor Berry Gordy Jr. mudou os rumos do pop americano com uma sacada: a de suavizar e homogeneizar a música negra, tornando-a assim convidativa à platéia branca, que ainda repudiava o (a seu ver) excessivo vigor criativo e sensual dos artistas negros. Gordy montou um time de instrumentistas capazes de dar forma a essa sonoridade e aplicá-la, com as devidas variações, aos seus contratados; recrutou um compositor, Smokey Robinson, versátil o suficiente para bolar um repertório adequado a cada um deles; e cuidou para que eles tivessem uma imagem palatável ao público branco. Gordy se tornou uma força da indústria fonográfica e lançou nomes brilhantes, como Stevie Wonder, Marvin Gaye, The Temptations, Jackson 5 e – o caso em questão no filme – The Supremes.

Entre os aficionados, existe o consenso de que o motor das Supremes era Florence Ballard, uma cantora excepcional na personalidade, na voz e no pavio curto. Gordy livrou-se dela, alçando Diana Ross à liderança do grupo e a um sucesso inqualificável à época para uma negra. Mas uma negra mais magra, de pele mais clara, voz mais amena e temperamento mais maleável. No filme, Beyoncé Knowles interpreta Diana Ross, com o nome Deena Jones. E a potente Jennifer Hudson é a mais talentosa e menos flexível Florence Ballard, aqui batizada Effie White.

Bill Condon, que escreveu o roteiro de Chicago e dirigiu Kinsey, é em geral competente. Mas, aqui, ele nunca atinge o que se propõe. Seu paralelo entre a trajetória da Motown e o movimento pelos direitos civis se resume a algumas montagens preguiçosas de imagens de arquivo. Seu recurso de substituir diálogos por canções ocasiona momentos constrangedores, em que uma parte do elenco tenta se manter ocupada enquanto outra parte solta a voz. Os personagens são meras rubricas: Jamie Foxx como o produtor faustiano, Beyoncé como a diva fabricada. O mais grave são os números musicais. À medida que a história progride, eles descambam para uma gritaria pavorosa, que nem de longe lembra o som redondo e cheio de texturas da Motown. Não à toa, das oito indicações ao Oscar do filme, só duas se incluem nas categorias mais nobres: de coadjuvante para Eddie Murphy (que usa sua ótima voz no papel de um trágico astro do rythym'n'blues) e, claro, para Jennifer Hudson. Tudo nessa estreante é acima da média. Inclusive o sucesso súbito e intoxicante, que vem lhe custando pactos como aqueles que o filme ilustra – com o tamanho do figurino, reduzido em uns dois números, e com o estilo vocal, que já lembra menos Aretha Franklin e mais Céline Dion. Essa, na verdade, é a conclusão melancólica que se tira de Dreamgirls. Nos Estados Unidos, o sucesso dos artistas negros ainda hoje é cobrado no que eles têm de único.

UMA BREVE HISTÓRIA DA MOTOWN

Como começou
Criada em 1959 pelo ex-boxeador Berry Gordy Jr., a gravadora fundou um novo estilo: o "Motown sound" – um soul suave e comportado bolado por um grupo de músicos, como o baixista James Jamerson, encarregado de acompanhar todos os artistas do selo


Getty Images


Quem lançou

Gordy gostava de canções curtas e despolitizadas, para atrair o público branco. Entre os grandes artistas que se encaixaram em seu figurino incluem-se Marvin Gaye, Stevie Wonder, Jackson 5, The Temptations e as próprias Supremes

Como acabou
A Motown começou a decair em 1972, quando se mudou de Detroit para Los Angeles, e quando artistas como Wonder e Gaye deram um basta à ditadura de Gordy. Nos anos 80, já havia perdido todo o dinheiro e o prestígio

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