Entrevista:O Estado inteligente

domingo, fevereiro 11, 2007

DANIEL PIZA

Rastros de guerra

Daniel Piza

A Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima, de Clint Eastwood, narram o mesmo episódio - o conflito entre japoneses e americanos na ilha de Iwo Jima, durante a Segunda Guerra - pelos dois pontos de vista. Mas não se trata de um confronto de versões sobre os resultados da batalha. Como num díptico, há muitas continuidades entre um quadro e outro. E a principal delas é subterrânea, como apropriado ao tema: uma gruta onde, no primeiro filme, os soldados americanos entram com lanternas e vêem o que os japoneses tinham feito a si mesmos - e onde, no segundo, testemunhamos o que os leva a isso. É o oposto da caverna de Platão, pois são as sombras que estão lá fora.

Lá fora se dá um combate terrível, muito bem filmado por Clint Eastwood. A edição não é tão frenética quanto a que tem dominado o gênero, e a fotografia de Tom Stern é rica nas graduações do cinza vulcânico que marca o solo de Iwo Jima. Panorâmicas do oceano pontilhado de porta-aviões ou do paredão cravejado de bunkers, assim como os closes rápidos e chocantes nos sofrimentos infligidos aos soldados, fazem pensar em Stanley Kubrick. Os planos médios dão conta das relações entre os personagens, com diálogos enxutos, e mostram a estratégia japonesa de esperar a ocupação de toda a praia para que se matasse o maior número de americanos, ainda que a superioridade de homens e equipamentos tornasse inevitável a vitória ianque.

Em A Conquista da Honra, que tem roteiro de Paul Haggis (de Crash, vencedor do Oscar do ano passado), a filmagem do combate se intercala com as cenas futuras de três dos jovens que hastearam a bandeira americana no topo da colina. Eastwood mostra como a turnê deles pelos Estados Unidos foi em ritmo de show biz e, embora parte da imprensa desconfiasse que a foto fosse um tipo de farsa, a população os tratou como heróis que não eram. Que o mais sensível deles seja um índio (Adam Beach), que não suporta ser tratado como celebridade num país que o segrega de determinados lugares, é apenas mais uma marca da influência de John Ford sobre Eastwood, que continua a refrasear a carreira do diretor de O Homem que Matou o Facínora e Rastros de Ódio.

Em Cartas de Iwo Jima, que tem roteiro de uma mulher, Iris Yamashita, a guerra é interrompida pelos flash-backs do general (Ken Watanabe) e de dois soldados japoneses. Com isso, o filme ganha uma força que falta ao outro - a identificação com os personagens - e deve explicar por que foi o escolhido para finalista do Oscar deste ano. Em compensação, não tem a atualíssima sátira do primeiro à espetacularização política da guerra. O desajuste, aqui, é entre o modo de pensar do general e o da maioria de seus subordinados. Tendo morado e estudado nos EUA, ele dá outro peso às noções de disciplina e sacrifício. É, porém, um comandante tão bonzinho que não convence.

Embora eu prefira Os Imperdoáveis e Sobre Meninos e Lobos, esses dois filmes mantêm o alto nível que o cineasta atingiu na maturidade, numa guinada que pode ser datada por Bird (1988), sobre Charlie Parker. Se reverteu a convenção dos westerns em Os Imperdoáveis e dos policiais em Sobre Meninos e Lobos, além de ter virado as costas para a Igreja e defendido a eutanásia em Menina de Ouro, agora destoa dos filmes de guerra, tanto que brinca com algumas referências. Em A Conquista da Honra, a principal mentira a respeito da foto é decifrada por uma mãe que, digamos, reconhece um atributo anatômico do filho. Em Cartas de Iwo Jima, um dos combatentes morre não por honra, mas por um mal-estar bem menos nobre... Eastwood não divide o mundo em dois partidos, e por isso mesmo sabe a importância de se posicionar. Nem tudo é versão.

CADERNOS DO CINEMA

O problema maior de Babel, de Alejandro Iñárritu, é o excesso de pretensão, indicado já pelo título. São três histórias: no Marrocos, na fronteira entre México e EUA e no Japão. As duas primeiras se conectam diretamente, o que se percebe desde o início, apesar do vaivém da narrativa. A terceira, saberemos ao final, se liga às outras por um motivo banal, casual. Alguns acham que a idéia é justamente essa; eu acho que, se for essa, a pretensão é ainda maior. Mas, antes de me explicar, digo: não se deve perder o filme.

Um filme apenas com as duas primeiras histórias seria excelente. O casal de turistas americanos (Brad Pitt e Cate Blanchett) vive na África árabe uma situação desesperadora que “todo mundo” um dia já temeu. Enquanto isso, a babá mexicana (Adriana Barraza), que leva os filhos do casal para o México sem se lembrar da autorização formal dos pais, comete um erro que “todo mundo” poderia cometer. O desespero explica em parte o descaso do casal com a vida da babá, e a ingenuidade dela explica em parte a besteira que cometeu com as crianças. Muitas vezes os males são causados assim: não pela má intenção, mas pelo medo e pela bondade. Daí a grande aflição que sentimos enquanto vemos o filme e nos compadecemos das desgraças que atingem essas pessoas.

A questão é que o filme não pára por aí. Primeiro, embute o assunto do terrorismo, como se dissesse que muitas vezes o que se classifica como tal não passa de um erro inocente. Segundo, adiciona a história da surda-muda que não consegue ser desejada e é filha de suicida, numa metáfora das dificuldades de comunicação do mundo hi-tech e da sociedade dita do bem-estar. Bem, o fato é que a natureza do sofrimento da japonesa é muito diferente, e isso só é acentuado pela ligação fortuita entre seu pai e o incidente marroquino. Aqui, o filme apenas lança uma tese; na costura entre as duas primeiras histórias, ele demonstra outra, mesmo que dela discordemos.

O talento de Iñárritu é evidente, a começar pela forma como cria essas situações-limite, de alta tensão melodramática, como já havia feito em 21 Gramas. Mas a própria necessidade de levá-las sempre a extremos, nem que para isso recorra a clichês dos mais abusados (como a velhinha curandeira que ajuda a americana) e a um final estranhamente feliz (só uma família sai ainda mais unida da história), não deixa de trair a superficialidade de suas idéias.

RODAPÉ

Fui com muito interesse ler Rimbaud na África, de Charles Nicholl (Nova Fronteira), porque disseram que tinha novidades e fôlego. Gosto muito de Rimbaud, ainda que meus poetas franceses favoritos sejam Villon e Baudelaire. Bem, as novidades são todas marginais, secundárias, e a narrativa é muito irregular porque cheia de exercícios especulativos (Rimbaud “poderia ter conhecido” fulano de tal na Etiópia, etc.) e digressões informativas (sobre coisas como o comércio ou a religião de cada país visitado). Nicholl pouco acrescenta ao que sabemos pelas cartas dele e de familiares e pelo testemunho de Verlaine, com quem brigou feio antes de se mandar da França. E acaba rendido ao falso glamour dessa errância, pois Rimbaud não estava interessado em fugir de uma civilização e descobrir outras mais livres ou sensuais, e sim em ganhar dinheiro e ficar longe do mundinho literário; afinal, já tinha escrito o que tinha a escrever. O mito do gênio precoce também é exagerado, porque o que fez de melhor fez entre os 18 e os 20 anos e não soma muitas páginas. Rimbaud não é uma mistura de Mozart com James Dean.

UMA LÁGRIMA

Para Whitney Balliett, crítico de jazz da revista The New Yorker, que morreu na semana retrasada. É uma delícia A Journal of Jazz 1954-2000 (St. Martin’s Press), um catatau com seus melhores textos. Ele teve a sorte de pegar a geração do bebop e o final de lendas como Billie Holiday, Duke Ellington e muitos mais. Misturava opinião e informação como poucos, era craque tanto na resenha como no perfil (tirou de Duke, por exemplo, um elogio inesperado a Orson Welles), era fã de Tom Jobim e via o jazz na perspectiva cultural, como uma “arte da surpresa” que não escolhia cor, classe ou sexo para se manifestar. Acima de tudo, seu dom de descrição era inspirador.

POR QUE NÃO ME UFANO

Se o problema de Gilberto Kassab, esse “presente” de José Serra para a cidade de São Paulo, fosse apenas o descontrole emocional - mais uma vez exibido num local público, de uma forma que na melhor das hipóteses parecia imitação tosca de Covas ou Jânio -, até poderia ser tolerável. Mas o que o descontrole não esconde é seu despreparo, a falta de rumos para a cidade, o oportunismo até mesmo de iniciativas aparentemente positivas como a despoluição visual ou a faixa para motos. E tampouco esconde o fato de que a conversão de Lula ao “centro” afundou o PSDB e seu aliado PFL. Assim como na seleção brasileira, os nomes novos são, no máximo, versões pioradas dos antigos.


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