Entrevista:O Estado inteligente

sábado, novembro 11, 2006

Roberto Pompeu de Toledo


Bush sem bushismo

É o que se prenuncia, para alívio
do mundo, após a sova eleitoral
tomada pelo
presidente americano

Do impressionante elenco de realizações negativas do presidente George W. Bush constam:

Lançou os Estados Unidos a uma guerra, no Iraque, que se converteu na segunda mais desastrosa aventura militar da história americana (depois do Vietnã), com possibilidade de virar a primeira, dependendo do desfecho que vier a ter;

Mentiu seguidamente ao povo americano e à comunidade internacional, na medida em que improvisava sucessivas justificativas para a guerra – das armas de destruição em massa do Iraque (inexistentes) ao apoio desse país ao terrorismo (inexistente) e à instauração, ali, de um regime democrático (impossível);

Reabilitou, por meio de instruções aos militares às vezes claras, às vezes ambíguas, o uso da tortura como política de Estado, enquanto instaurava em Guantánamo um campo de concentração onde não-pessoas são presas sob não-acusações e condenadas, em não-julgamentos, a suportar uma não-vida por um não-prazo;

Conseguiu que uma política alegadamente voltada a proporcionar mais segurança ao mundo e aos EUA resultasse no contrário, ao transformar o Iraque em sementeira de terroristas, ao fracassar na desativação da sementeira Afeganistão-Paquistão e ao proporcionar considerável impulso ao ressentimento e ao ódio no resto do mundo muçulmano;

Jogou na lona o prestígio dos EUA no mundo.

A esses fatores, todos relacionados com a guerra no Iraque, podem ser acrescentados desde o colossal déficit de 1,5 trilhão de dólares nas contas públicas, no acumulado de seis anos de bushismo, até o boicote das políticas internacionais de proteção ao meio ambiente, passando pelo obscurantismo religioso que inibiu o ensino do evolucionismo nas escolas e atravancou as pesquisas sobre as células-tronco. Mas fiquemos com a guerra do Iraque. Ela é a suprema realização do atual governo de Washington. Travaram-se principalmente em torno dela as eleições que, na semana passada, premiaram Bush com estrondosa derrota. Duas perguntas ressaltam, em relação a esse tema do Iraque. A primeira é: seria diferente se outro presidente estivesse no poder?

Calou tão fundo na alma americana, e com todos os motivos do mundo, o ataque de 11 de setembro de 2001 que – caberia supor – os EUA inevitavelmente iriam em seguida à guerra, fosse qual fosse o ocupante da Casa Branca. Acresce que os EUA, nação guerreira, não costumam hesitar em puxar o gatilho. O argumento da inevitabilidade de uma reação bélica ao 11 de Setembro pode valer para o Afeganistão do Talibã, que abrigava Osama bin Laden, não para o Iraque. A guerra contra o Iraque já era gestada, no círculo íntimo de Bush, dominado por neoconservadores embriagados de certezas morais e de onipotência, já antes do 11 de Setembro. Suas razões situavam-se em algum lugar entre a necessidade de assegurar um petróleo mais amigo e mais barato e um choque que poria de cabeça para baixo a geopolítica do Oriente Médio. As marcas da ideologia bushista estão aí fundamente impressas. Não dá para acreditar que outro presidente seguiria a mesma linha. Quanto ao instinto guerreiro dos EUA, o bushismo exacerbou-o a ponto de criar o conceito de "guerra preventiva" – um castigo prévio, uma absurda pena aplicada antes de cometido o delito. Não é qualquer presidente que iria tão longe.

Se a guerra do Iraque é uma criação tão própria, assinalada de modo inconfundível pela grife do bushismo, com suas inerentes características de prepotência e auto-engano, daí decorre a segunda pergunta. Por que Bush contou, durante tanto tempo, com o apoio dos americanos? A resposta é que eles estavam anestesiados. John le Carré considerou que atravessavam um período de doença histórica. Sejamos mais condescendentes: estavam anestesiados. O 11 de Setembro pôs o país em estado de choque, e a primeira reação foi o refúgio no patriotismo. Ir contra o presidente era ir contra a nação. Os EUA enrolaram-se na bandeira, e nesse movimento envolveram tanto a oposição democrata quanto a imprensa. A oposição dissolveu-se na sopa em que o governo, aproveitando-se da situação, manipulava o patriotismo e o medo. A imprensa, tão vigilante em outros momentos decisivos, como Watergate e a Guerra do Vietnã, atravessou, dócil e boazinha, um de seus piores períodos.

Os olhos se foram abrindo aos poucos. E revelaram-se despertos de vez na eleição da semana passada, quando os republicanos de Bush perderam a maioria na Câmara e no Senado e a maior parte dos governos estaduais. O grande derrotado, sem remissão à vista, foi o bushismo. Bush vai continuar, mesmo porque tem mais dois anos de mandato, mas sem bushismo. Não mais se sustenta a ideologia que lhe revestia a Presidência, vitimada pela própria arrogância e farisaísmo. Ela já fora empurrada a um beco sem saída no Iraque. Recebeu agora do eleitorado a sentença de morte. Não que tudo vá mudar num passe de mágica. A herança maldita é pesada e o Iraque é um problema que Bush provavelmente legará ao sucessor. Mas o ambiente no mundo já se desanuvia.

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