Entrevista:O Estado inteligente

sábado, novembro 04, 2006

Roberto Pompeu de Toledo Dos pastéis na rua à poltrona de couro


Variações e significados das fotos
dos políticos em dois momentos:
antes e depois da campanha eleitoral

Saem as comidas, entram o sofá e a poltrona. Fotos de políticos fornecem um retrato emblemático de nossa civilização. Os mais doutos extrairiam delas tratados de alta sapiência. Nas campanhas eleitorais, no Brasil, é hora das fotos de político comendo. Como comem, os candidatos! Como vão a feiras, mercados, restaurantes populares! – ou a botequins, em cujos rudes balcões se encostam para sorver o cafezinho, com freqüência acompanhado do pão de queijo. Pastéis também se precipitam aos montes em direção aos políticos. E broas, salames, queijos, croquetes, doces. Os fotógrafos, seres sabidamente maus, aproveitam esses momentos e... crau. No dia seguinte, a foto no jornal é do candidato de boca aberta, às voltas com um impossível pedaço de melancia, ou deglutindo mal e mal o bolinho de bacalhau que lhe queima o céu da boca – mas pensa o leitor que o político não gosta? Gosta. Sua intuição indica que sair por aí comendo o que lhe aparece pela frente será interpretado como benfazeja disposição de comungar com o povo.

Dois impulsos inversos contribuem para esse hit das campanhas que é o flagrante do candidato comendo. Um, de fora em direção ao político, é o do homem ou da mulher da feira, do mercado, do restaurante ou da residência particular eventualmente visitada de oferecer algo ao visitante. Somos um povo cordial. O outro, vindo de dentro do político, é o de posar de gente comum, que... sim, até come! Tão simpático... Ele não tem nojo da nossa comida! Ponto alto são as investidas rumo aos bandejões. O candidato entra na fila, bandeja na mão... clique: foto dele na fila, bandeja na mão... oferecem para deixá-lo passar à frente... não, obrigado, ele é apenas mais um, igual aos outros... ainda que acompanhado de assessores, repórteres, fotógrafos, cinegrafistas. Senta-se ao mesão, cotovelos contra os cotovelos dos vizinhos de lado, e o vizinho da frente a dois palmos de seu nariz. Clique. E com que ar de satisfação leva o garfo à boca... clique... como se muitos desses estabelecimentos não tivessem o demolidor apelido de "lixão".

A comida já gerou clássicos das campanhas políticas. Ulysses Guimarães dizia que campanha era tempo de se empanturrar de maionese – o prato que o bom povo brasileiro considerava de festa. O candidato Fernando Henrique Cardoso protagonizou, em 1994, o célebre episódio em que se disse deliciado com uma buchada de bode, no sertão do Nordeste – e ainda esnobou ensinando que buchada não passa de uma versão cabocla da tripe à la mode de Caen, requintado prato francês. Mas a campanha acabou, e as fotos agora são dos gabinetes. A hora é das visitas protocolares, das articulações, das reuniões. Nos flagrantes da imprensa, sai a comida, entram o sofá e a poltrona.

O presidente George W. Bush (para começar com uma digressão estrangeira) acomoda os visitantes numa das poltronas que ladeiam a lareira do Salão Oval da Casa Branca e ocupa a outra. Dá-se então aquele aperto de mão que não acaba enquanto o mais atrasadinho, no batalhão de fotógrafos, não disparar o seu clique. A foto que resulta é curiosa. Bush costuma estender amplamente o braço e apertar com vigor a mão do convidado, mas olhando para a câmera e sorrindo. A mão vai para um lado e o olhar, com o sorriso, para o outro, como duas entidades desarticuladas entre si. O jeito de Bush se comportar nessas ocasiões deve querer dizer alguma coisa. Talvez explique o fato de a Guerra do Iraque ser o desastre que é.

No Palácio do Planalto, o presidente Lula recebe os visitantes no conjunto de sofá e poltronas de couro existente numa das pontas de seu gabinete. O presidente ocupa a poltrona, o convidado, o sofá. Acabou a campanha, nada de promiscuidade. Lula (assim como faziam seus antecessores) senta-se na poltrona. É a maneira de se isolar num espaço onde não entra mais ninguém. Se se sentasse no sofá, daria chance para alguém se meter ao lado. Pior ainda se ficasse no meio do sofá, espremido entre dois intrusos, e sem onde pousar os braços. Tais situações feririam aquilo que o presidente Sarney chamou de "liturgia do cargo". A poltrona é o objeto mais aparentado a um trono ao alcance da parte traseira do chefe da nação em tempos republicanos. É nela que o presidente posa para as fotos. O sofá, equivalente naquelas circunstâncias a galerias populares, fica para a(s) visita(s).

Mas os fotógrafos, esses seres maldosos, gostam mesmo de outro tipo de situação – aquela em que o presidente e seu(s) convidado(s) estão se sentando. Ou seja: não estão nem de pé nem sentados, mas no movimento de inclinar-se em direção ao assento, as pernas começando a dobrar-se, o torso arqueado, a cabeça voltada para baixo. É uma posição instável, nem para cá nem para lá. Transmite deselegância e sugere fragilidade. Na quinta-feira passada, a Folha de S.Paulo publicou uma foto assim, de Lula com o governador eleito de Sergipe, Marcelo Déda. Os fotógrafos que disparam a câmera nesses momentos sabem o que fazem. Eles flagram o poder num momento de instabilidade.

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