-Vale a pena inibir e, mais que isso, protestar publicamente contra o lucro! — Como? — É isso mesmo. Uma passeata contra os lucros exorbitantes dos banqueiros e dos capitalistas em geral.
— E o lucro dos políticos mistificadores do povo? Reagi, pondo em pauta uma das questões dolorosas desses nossos tempos modernos brasileiros, tempos modernos sem Chaplin e Sartre, mas com mensaleiros, sanguessugas, aloprados, guerrilheiros aposentados e radicais equilibradissimos .
— Falo dos que tiram a mais-valia dos trabalhadores, gritaram indignados, invocando uma das palavras mágicas mais potentes do vocabulário marxista, dessas que equivalem àquelas fórmulas antigas como Deo gratias, ou Vade retro, Satana! — Eu topo, falou alguém da varanda, desde que fizéssemos um protesto contra o sucesso, a felicidade, a convicção, o orgasmo e o poder. Por que não, se todas essas palavras invocam um alçar vôo, um pulo por cima das rotinas que não deixam ver um antes e um depois? Se o lucro dos banqueiros é uma sacanagem, o que dizer do poder dos déspotas e dos ditadores? — Mas não tem nada a ver...
Esse “não tem nada a ver” é o x da loucura humana impressa no caminho sem volta dos radicalismos. Eu faço ciência, você faz ideologia. Eu estou com a verdade, você com a mentira; eu propago a fé, você a heresia.
Eu estou com a realidade, você com a alienação. Nós roubamos, eles querem nos rejudicar. . .
Richard Moneygrand me manda, dos Estados Unidos, um e-mail comentando o clima póseleitoral brasileiro. Eis um trecho significativo: Os vencedores me parecem inquietos. Aqui, nós vamos tirar as tropas do Iraque e ninguém fala em complô ou plano contra o governo. Esse desassossego prova minha tese de que vocês não funcionam fora das panelinhas. Até hoje, o Brasil não sabe competir. As urnas eletrônicas mais perfeitas compensam o horror da disputa igualitária.
Tudo indica que a vitória nas urnas não foi suficiente. Não liquidou os adversários ainda vistos como inimigos.
Ganhamos bem, diz quem triunfou, mas ainda não chegou a hora de fazer o que é preciso, nem de calar os que, sendo contra nós, devem ser obrigados a uma saudável ‘auto-reflexão’ para que o seu ‘ódio’ contra nossa causa possa ser transformado, senão em amor, pelo menos em franca admiração ou vasto silêncio.”
Precisamos de novas idéias. O crescimento é básico.
— Maria, trás o bacalhau ! A doméstica, uma mulata clara de vestidinho branco apertado na cintura apetitosa, digna de algum racismo, logo chegou com uma fumegante travessa.
Todos sorriram e mal o prato pousou na toalha branca da mesa, foi atacado a céleres colheradas dentro do método brasileiro do cada qual pedindo que suas mulheres tirassem o seu pedaço favorito. Se possível, o melhor pedaço.
Rolou em seguida um vinho português e os elogios, porque o prato era, como as mulheres gostosas, irresistível e promovia um irresistível estupro.
Daí que ninguém esperava por ninguém para começar logo a comer com gosto e afinco.
Íamos comendo e discutindo sérios o Brasil. Afora o prato, comido sem dúvida e com muita fome e fé, tudo era dilema, problema, angústia.
— O problema do crescimento brasileiro é o salário. Vejam bem — complementou um de nós, depois de uma bela garfada e do olhar que mandava falar baixo da esposa — essa refeição custou mais do que o salário mensal da Mariazinha! Mariazinha era a empregadacozinheira que acabara de servir aquele grupo tão preocupado com o desenvolvimento coreano, o sucesso chinês, os salários baixos e a sorte do povo brasileiro.
— Mas será que o valor desse tipo de serviço (cozinhar, limpar, espanar os móveis, varrer a casa, arrumar as camas, limpar latrinas etc.), isso que chamamos sem desempacotar de “trabalho doméstico” (não vamos falar de eventuais serviços sexuais...) — e todo mundo riu muito — não seria de fato muito alto? Para melhorar os salários dos empregados domésticos temos que fazer como os americanos que, em casa, não têm quem os sirva. Será que nós estaríamos dispostos a viver como eles? Sem esses empregados todos em nossa volta? Temos que mudar a economia ou o estilo de vida?
Mandei fazer um jardim no túmulo do meu filho mais velho, que morreu de empresa nacional e de Brasil no mês de julho, diz-me meu leitor mais atento com lágrimas nos olhos. Jamais prestei atenção no Dia de Finados, mas este ano foi diferente. Eu tinha um morto naquele “dormitório” silencioso, habitado por pessoas que jamais se mexem ou se levantam da cama. Depois que falei com o jardineiro dos túmulos, o florista do além, senti uma estranha leveza no coração.
No local concreto de minha dor, na cova onde choramos a perda do pai, do marido, do irmão, do tio, do profissional competente e fiel, do amigo, e do filho amado haveria, além do nome próprio — o marco e o registro oficial — um pequeno jardim.
Um punhadinho de flores vivas que encarnam os impulsos do amor e ajudam a transformar e a distinguir — durma-se com isso — o esquecimento obrigatório em saudade querida e necessária.
Entrevista:O Estado inteligente
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