O filósofo da liberdade
Giuliano Guandalini
Eddie Adams/AP
Friedman: ele estava certo desde o início
"Ninguém gasta o dinheiro dos outros com tanto cuidado como gasta o seu próprio. Se quisermos eficiência e eficácia, se quisermos que o conhecimento seja bem usado, isso precisa ser feito por meio da iniciativa privada"
Milton Friedman
(1912-2006)
O economista americano Milton Friedman, morto na quinta-feira passada, aos 94 anos, sempre negou ter sido o autor da frase "Não existe almoço grátis". Ao ouvi-la, aconselhava às pessoas mais atenção a outro aforismo, esse sim 100% seu: "Ninguém gasta o dinheiro dos outros com o mesmo cuidado com que gasta o seu próprio". Pensador econômico mais influente dos últimos sessenta anos, Friedman, filho de imigrantes do Leste Europeu nascido no bairro do Brooklyn, em Nova York, foi campeão das liberdades individuais em um período em que o centralismo, o estatismo e as razões de Estado eram endeusados. Para Friedman, a liberdade econômica, a liberdade política e a liberdade pessoal eram manifestações de um mesmo princípio, o invencível poder do indivíduo e suas escolhas. Ele colocou sua capacidade neuronial e seu inesperado charme pessoal para pregar tanto as virtudes do livre-mercado quanto para defender causas como o fim do serviço militar obrigatório ("soldados profissionais escolhem lutar e o fazem melhor do que quem é obrigado a vestir uniforme") e a descriminalização das drogas ("as políticas antidrogas são apenas um subsídio dado ao crime organizado"). Isso ampliou seu escopo de ação e fez dele um nome popular, mas principalmente deu a seu modelo de pensamento os contornos de uma original e poderosa filosofia da liberdade.
Embora seu nome seja sinônimo de "economista conservador", Friedman se distanciava dos conservadores em muitos pontos. Defendeu, por exemplo, a correção monetária, coqueluche brasileira dos anos 60. Ele sustentava que a indexação de contratos e impostos era maneira eficiente de impedir que a inflação punisse em demasia o bolso das pessoas. Nunca ofereceu, porém, uma solução para o corolário inescapável da indexação de contratos: a perpetuação da inflação pela inércia em mudar um sistema que parecia autocorrigir seus defeitos.
Friedman pregava apaixonadamente, desde a juventude, que as pessoas deveriam ser livres para fazer o que quisessem com seu suado dinheiro e com sua vida. Essas idéias parecem hoje apenas o senso comum. Foram revolucionárias em um tempo em que o comunismo era tido como uma alternativa viável ao capitalismo. Foram um jorro de luz sobre a concepção obscurantista de que só governos fortes podiam resolver os problemas econômicos e sociais das nações. Seus ensinamentos começaram a ser valorizados no fim dos anos 50, quando as políticas intervencionistas e gastadoras começaram a se esgotar nos países centrais do capitalismo, resultando mais tarde em surtos inflacionários e até estagflação (preços em alta com crescimento em baixa). Friedman apontou a saída. Suas receitas passaram a ser adotadas, enquanto se aposentavam as do inglês John Maynard Keynes (1883-1946). Friedman foi inspirador de algumas políticas econômicas do presidente americano Ronald Reagan e conselheiro pessoal da ex-primeira-ministra da Inglaterra Margaret Thatcher. Reagan foi um discípulo rebelde. Thatcher, uma aluna exemplar. Juntos, com a bandeira do individualismo e da eficiência econômica dos mercados, eles infligiram o nocaute moral e econômico que derrubou a União Soviética. O punho invisível de Friedman pode ser sentido em todo o processo.
Iconoclasta e incansável opositor do modelo econômico predominante no pós-II Guerra Mundial, Friedman teve o raro privilégio de ver os fatos confirmar suas teses. "O keynesianismo não tinha uma teoria para a inflação, não trazia uma explicação para o aumento de preços", afirma o economista José Júlio Senna, que prepara atualmente um livro sobre a história da política monetária. Completa ele: "Keynes foi o grande revolucionário do século passado, mas Friedman foi o grande contra-revolucionário". Para combater a inflação, dizia Friedman, os governantes deveriam em primeiro lugar controlar a emissão de dinheiro, algo desprezado até então. Surgiu daí a chamada corrente monetarista, predominante hoje nos bancos centrais de todo o planeta. Essa escola ficou associada à Universidade de Chicago, na qual Friedman lecionou de 1946 a 1976 e onde deixou discípulos. Em 1957, publicou Teoria da Função Consumo, um de seus trabalhos mais citados. Nele demostrou que o consumo não cresce de maneira duradoura e sustentável a partir de estímulos pontuais, como imaginava Keynes, mas somente se houver um ganho permanente na renda das pessoas. Seu trabalho mais influente foi História Monetária dos Estados Unidos, de 1963, escrito em parceria com Anna Schwartz. Foi nesse estudo que ele estabeleceu as bases do monetarismo.
A reação à morte de Friedman é termômetro de sua estatura intelectual. Thatcher o saudou como o economista que reatou o vínculo entre a economia e a liberdade quando ele havia sido quebrado: "Ele foi um guerreiro intelectual da liberdade". O ex-presidente do Fed (Federal Reserve, o banco central americano) Alan Greenspan afirmou ter sido influenciado diretamente por Friedman durante cinco décadas: "Meu mundo não seria o mesmo sem ele". Henrique Meirelles, presidente do Banco Central brasileiro, lembra que todos correram para os ensinamentos de Friedman quando a inflação mundial saiu de controle e começou a devorar riquezas. Em uma entrevista concedida durante a crise cambial brasileira de 1999, Friedman disse: "O Brasil tem de pôr sua casa fiscal em ordem: ou corta fortemente os gastos governamentais, ou aumenta fortemente a receita. Não há outro caminho. Tem outra saída: imprimir dinheiro. Mas isso leva inevitavelmente à inflação". Só a parte que fala em aumento de receita foi seguida.
Entrevista:O Estado inteligente
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