Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, novembro 10, 2006

Merval Pereira - Cair na real




O Globo
10/11/2006

O presidente Lula tem uma tarefa delicada na montagem de seu segundo governo: refletir no Ministério a realidade da política, e não toda a gama de apoios que recebeu, especialmente no segundo turno, quando somou à sua votação setores que haviam votado na oposição no primeiro turno. Os 60% dos votos válidos que recebeu no segundo turno, ao contrário da eleição de 2002, quando agregou os eleitores que eram contra a continuação da era tucana, estão compostos de uma parcela ponderável de eleitores que eram oposição a Lula, e viraram seus votos por razões emocionais, que já podem até ter desaparecido antes mesmo que comece o segundo mandato.


Uma minoria de eleitores de Heloísa Helena e Cristovam Buarque foi para Lula, mas esses já devem estar arrependidos diante das movimentações "conservadoras" e fisiológicas na montagem do Ministério. A simples menção a Delfim Netto e ao empresário Jorge Gerdau deve deixar esses radicais com náuseas. Os que se passaram para o governo fazem parte do núcleo duro da esquerda radical: cerca de 3% dos eleitores de Heloísa Helena e 0,5% dos de Cristovam, e viraram os votos possivelmente no debate da privatização, na doce ilusão de que o governo estava dando uma guinada à esquerda.

São os que acreditavam, como disse o secretário-geral da Presidência, Luiz Dulci, num momento de arrebatamento, que a vitória de Lula foi dos que querem o socialismo no Brasil. As pesquisas mostram que a maior parte dos eleitores dos dois dissidentes petistas mantiveram no segundo turno uma posição oposicionista, escolhendo o candidato tucano Geraldo Alckmin, certamente não por ser ele o candidato de seus sonhos, mas para derrotar Lula.

A campanha eleitoral teve a vantagem, para Lula, de melhorar tanto a imagem de seu governo que, à medida que foi se desenvolvendo, inclusive no segundo turno, conseguiu virar o voto de parcela do eleitorado que votou em Alckmin no primeiro turno - nada menos que 7% dos eleitores - e uma parcela ponderável dos que haviam votado nulo ou em branco. No fim das contas, foi uma sorte de Lula não ter vencido no primeiro turno, quando o resultado mostrou um país dividido, pois teve mais tempo para convencer parte do eleitorado, mesmo que utilizando técnicas ilusionistas, de que era a melhor opção.

Mas esses eleitores a mais que Lula agregou ao núcleo duro de sua votação do primeiro turno não são fiéis. Esse apoio foi muito impactado pelo programa eleitoral, que dourou a pílula do governo e o tornou atraente para um maior número de pessoas. O eleitorado cativo de Lula foi o do primeiro turno, 48,6% dos votos válidos, tão solidificados que Alckmin não teve capacidade de atrair nem unzinho deles.

Os votos em branco e nulos ficaram dentro do esperado, não revelando nenhum movimento especial de protesto do eleitorado. O número de abstenções foi alto, cerca de 18% do eleitorado, mas obedeceu ao índice histórico, o que significa que mesmo as crises políticas não tiraram o gosto do eleitor pelo voto. No máximo, esse índice, numa eleição em que o voto é obrigatório, mostra que há uma tendência reprimida para o voto opcional. Nos Estados Unidos, onde o voto é facultativo, a abstenção histórica é da ordem de 50%.

Sem o apoio político consistente, o presidente assumiu ele próprio a coordenação das negociações políticas, o que em princípio é perigoso, pois o expõe pessoalmente, sem que haja um anteparo inicial que possa ser culpado por um eventual desacordo, como o então chefe da Casa Civil, José Dirceu, que foi desautorizado em 2002 depois de ter fechado um acordo com o PMDB.

Por outro lado, a decisão do presidente torna mais transparentes as relações do governo com partidos e parlamentares, e pode ter sido tomada não por falta de interlocutores, mas para que não se repitam os erros do passado. O presidente não poderá mais, também, argumentar que não sabia de nada, ou que foi traído, e poderá ser responsabilizado diretamente por negociações escusas que porventura ocorram.

A cada momento que passa, porém, a negociação parece mais e mais direcionada para os mesmos partidos e personagens que protagonizaram recentes e antigos escândalos. O PP, cada vez mais de Paulo Maluf, reivindica seus ministérios; o PTB, cada vez mais de Roberto Jefferson, adere informalmente, reforçado pela provável presença do ex-presidente e senador eleito Fernando Collor; e o PMDB apresenta-se como o principal interlocutor, com uma fome de cargos equivalente ao seu poder eleitoral. Caminha para exigir as presidências da Câmara e do Senado, a liderança do governo no Senado e nada menos que seis ministérios.

Feitas as contas, o presidente Lula sai desta reeleição mais fraco politicamente do que foi eleito em 2002, embora o PT tenha elegido mais governadores e a bancada petista na Câmara não tenha sido tão afetada pelos escândalos em que o partido se envolveu.

Lula hoje é mais contestado do que jamais foi em sua vida política, tem um primeiro mandato a defender e um passado recente que ainda está sub-júdice, com seus principais homens envolvidos em falcatruas diversas que serão julgadas no decorrer deste segundo termo. Se sua eleição não será contestada diretamente na Justiça Eleitoral pela oposição, ela estará exposta a sérios percalços nos próximos anos.

Além do mais, se quer mesmo marcar o segundo mandato pelo crescimento da economia, a política assistencialista e os gastos públicos expandidos que garantiram sua reeleição não servirão para alcançar os objetivos. O primeiro embate já começou, em torno do próximo aumento do salário mínimo, que não poderá ser nem de longe parecido com o deste ano eleitoral.

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