Entrevista:O Estado inteligente

domingo, novembro 19, 2006

JOÃO UBALDO RIBEIRO Grave preocupação

Imagino que o gentil leitor ou a encantadora leitora possam suspirar mal resignados, diante do título acima: lá vem ele com assombrações para o futuro do país outra vez. Ledíssimo engano, pois não estou com preocupação nenhuma em relação a “este país”. As fontes oficiais, a começar pelo presidente, nos revelam que o país está pronto.

Está tudo arrumado para o desenrolar do espetáculo do crescimento, chega a dar para sentir no ar o clima de largada para a Grande Disparada à Frente que experimentaremos a partir do próximo mandato. É só esperarmos até o novo ano, não vamos começar agora, com o Natal, o réveillon e a semana santa já aí. A data certa é um belo dia de abril, para ficar tudo ajeitado como devia e o homem dar a bandeirada.

Uns chatos ficam me pedindo para escrever sobre a bagunça nos aeroportos.

De novo, recorro às autoridades e elas informam que os atrasos são normais.

O pessoal tem mania de estranhar as coisas mais normais do mundo, como no caso do caixa dois eleitoral, que obrigou o próprio presidente a achar tempo para largar o trabalho em Paris e dar uma entrevista explicando como era normal. E esse negócio de avião interessa é às elites. Só as elites estão preocupadas com avião, o povo mesmo viaja de ônibus ou caminhão. Claro, as estradas também não valem nada e morre mais gente nelas que em certas guerras, mas isso deve ser algum resto da herança maldita (aliás, algo me diz que vão continuar encontrando muitos restos da herança maldita nos próximos anos) e logo será corrigido. Tapa-buraqueiro que tapa um buraco tapa mil.

Ou, no atual estilo, tapa mais do que todos os governos anteriores juntos.

Além disso, o principal continua garantidíssimo, pois se encontra assegurada a mobilidade do Nosso Guia. Como se sabe, ele dispõe de transporte próprio, que por acaso é avião especial, mas são as injunções do cargo. Pelo gosto dele, que do povo veio e do povo nunca se afastou, era na base do pé na estrada, mas nem tudo é como a gente quer. E, com ele se mexendo, o país não pára. Como teríamos marcado presença na campanha eleitoral de Chávez, se o presidente estivesse sujeito aos percalços de um qualquer? Todo mundo pensa que o trabalho alheio é moleza, mas, como se diz, lá no Nordeste, “se o tatu está gordo, a unha é que sabe”.

Quem quiser que pense que é moleza, o juízo fica zonzo e confunde até a Venezuela com a Bolívia, quando todo mundo sabe que a Bolívia é outro país de cujos interesses também cuidamos.

Finalmente, a possibilidade de ninguém, além dele e da comitiva, conseguir mais viajar pode ser parte de uma política demográfica esperta, que os olhos da má vontade não conseguem enxergar. Comporá, quem sabe, um esquema para gradualmente descongestionar os grandes centros urbanos e estancar o êxodo rural, bem como tantas outras mazelas que nos afligem e que não nos afligiriam, se não fôssemos obrigados desnecessariamente a vê-las.

Talvez já esteja na mente de um planejador o Pau-de-Arara Família, para transportar de volta ao Nordeste os temidos responsáveis pela blindagem de carros nas grandes cidades e antecipo a Cartilha do Retornado, que, depois do Pau-de-Arara Família, passa a receber a Bolsa Família e permanece o resto da existência no lugar de onde nunca deveria ter saído (com exceção do presidente, que saiu por desígnio divino), tomando a cachacinha dele, jogando conversa fora e fazendo filho, que é o de que o povo gosta mesmo.

A mesma coisa pode ser dita das dificuldades em transportar bens e mercadorias produzidos em todo o território nacional. À primeira vista, as muitas aves agoureiras que circundam o melhor governo que este país já teve haverão de ecoar a grita das elites, segundo a qual isso traz prejuízo para todas as áreas. Gente míope, só enxerga de perto. Sim, talvez haja prejuízo num primeiro momento, mas depois a mesma sadia descentralização deverá ocorrer. Incapazes de transportar sua mercadoria, os empresários serão forçados a desenvolver soluções locais, com a conseqüência de que poderíamos facilmente atingir níveis albaneses de auto-suficiência em todas as áreas. Só falta imprimir no céu, para todo mundo entender de vez: o país está pronto, os alicerces estão firmados, até os deputados já arrumaram seu aumentozinho e devem trabalhar mais do que nunca, com certeza pelo menos dois dias por semana — e em Brasília mesmo, não junto às bases, em suas casas de praia ou campo.

Portanto, não estou preocupado com nada disso em que vocês pensavam.

A preocupação, desculpem, envolve até meu interesse particular, embora se trate de uma condição partilhada por muitos homens e uma mulher ou outra. Refiro-me à careca. Agora, Deus meu, ficou perigoso ser careca aqui no Rio. É que começaram a roubar cabelo novamente, deu no jornal.

Se os carecas tivessem cabelo, estariam com ele em pé, porque a voz corrente é que o assaltante atira e mata, se não encontra o que quer. Desde que soube disso, vivo em permanente pesadelo, ante a perspectiva de ouvir um temível “o cabelo ou a vida”.

Mas esqueci que o país está pronto e que, naturalmente, isto envolve a segurança de todos os cidadãos, cabeludos ou carecas. Assuntei, assuntei e matei a charada. Está literalmente na cara e eu não vi antes, é por essas e outras que o governo tem tanto trabalho. Por que o pessoal do governo, com muito raras exceções, usa barba? Minha mente maldosa pensava que era uma forma de puxa-saquismo, ou de emblema de militância. Não é nada disso, eles estão é ensinando aos carecas como não passar aperto na hora do roubo de cabelo — é só oferecer a barba. O homem não disse, repito pela enésima vez, que o país está pronto? Pois é, as barbas mostram que já existe um Plano Nacional de Segurança em andamento, só não vê quem não quer.

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