Memórias de um promotor turrão
Ele enfrentou o Esquadrão e a ditadura. Mas o PT encastelado no poder derrotou sua paciência
Laura Greenhalgh
Hélio Bicudo faz gosto em assumir-se como um sem-partido, embora longe de ser um sem-trabalho. Membro de organizações internacionais de defesa dos Direitos Humanos, está sempre preparado para uma boa briga. Agora, por exemplo, deve interpelar o governo brasileiro em cortes internacionais pelo descaso com que trata os povos indígenas. E jamais recorre ao cansaço da vida - o que seria permitido a um octogenário que é pai de sete filhos e avô de 14 netos - ao apontar a urgência de se reabrir o debate em torno da Lei de Anistia no Brasil, "esse arranjo inaceitável, que iguala vítimas e algozes".Nesta próxima quarta-feira, Bicudo lança às 20 horas no Museu de Arte de Moderna de São Paulo o livro Minhas Memórias (ed. Martins Fontes), obra fundamental para os jovens e todos os que se interessem pelo processo político brasileiro a partir dos anos 60. "Sinto certo desafogo por ter cumprido a tarefa que me impus e levei ao fim", comenta em relação ao relato que demorou quatro anos para escrever. Nele repassa o tempo em que enfrentou o Esquadrão da Morte e o delegado Fleury, torturador-mor do Dops; o período em que militou na imprensa (foi editorialista de O Estado de S. Paulo); sua relação estreita com a hierarquia da Igreja católica; o encanto e a desilusão com o PT, sigla com a qual foi parlamentar e vice-prefeito de São Paulo, e da qual se desligou no ano passado; e seus vários embates com Lula. Aqui, talvez, estejam os momentos mais reveladores do livro. Muito além do confessional.
Em suas memórias, fica clara uma trajetória se divide em dois grandes capítulos: os anos vividos no Ministério Público (MP) e os anos passados na política. Mas o que é prevalente na sua figura pública? O promotor? O político?
Ah, são várias facetas... Eu agregaria até os anos em que estive vinculado ao governo Carvalho Pinto. Aquele período foi importante porque travei grande contato com a vida política, até o golpe de 1964, quando voltei ao MP. Daí então me envolvi com investigação do Esquadrão de Morte, uma empreitada pela qual fui punido pelo Procurador Geral da Justiça e criticado por muitos dos meus pares.
O que o levou para um caminho difícil e arriscado, naqueles já tão difíceis e arriscados anos 60?
Quando começaram a aparecer os mortos pela periferia de São Paulo, cadáveres com sinais claros de execução, ao lado dos quais encontravam-se cartazes com o símbolo do Esquadrão - uma caveira sustentada por dois fêmures cruzados - passei a me incomodar com a omissão da polícia e do próprio MP. Ora, o MP tinha obrigação de procurar saber o que estava acontecendo. Mas os inquéritos chegavam e eram arquivados. Minha primeira representação sequer foi considerada. Depois houve um recrudescimento da violência e o Judiciário acordou. Diante de nova representação, fui então nomeado para acompanhar o caso. Só que naquela base: "Já que você quer mexer nisso, vá em frente, mas irá se arrebentar...". Àquela altura havia centenas de mortos. Os membros do Esquadrão tiravam presos correcionais do presídio Tiradentes simplesmente para executá-los.
Ou seja, não eram bem presos...
Eram correcionais. Gente pega por vadiagem, por bater carteira, roubar uma fruta, bandido pé-de-chinelo. A figura do preso correcional já era em si uma ilegalidade, porque não existia no Código de Processo Penal. A polícia ligada ao Esquadrão colocava os correcionais lá no Tiradentes, junto com gente que cumpria sentença. E justamente eles apareciam mortos por aí. Era a polícia querendo mostrar a eficiência de seus métodos para a população de São Paulo. Eficiência e intimidação. Matou-se muita gente. O trabalho que fizemos pode ter levantado em torno de 1% dos casos, porém as vítimas do Esquadrão beiram a casa dos mil mortos. Isso, na Capital e no interior.
Já eram visíveis as relações da polícia com o tráfico de drogas?
Com o tráfico de drogas, tráfico de influência, prostituição... Entre um depoimento e outro, soubemos de um caderninho onde dois traficantes marcavam seus encontros com o delegado Sérgio Paranhos Fleury, encontros para lhe passar dinheiro. Nunca consegui botar a mão no caderninho, mas aqueles dois marginais, cujos apelidos eram Carioca e Paraíba, faziam a contabilidade dos donativos para Fleury. Depois foram mortos, e incinerados, na divisa de Rio e São Paulo.
Parece que o delegado não estava só interessado no dinheiro...
Pois é, conto isso no livro. Numa audiência, eu ouvia um investigador de polícia quando resolvi lhe perguntar como é que aquele pessoal do Esquadrão atuava com tanta desumanidade. "Droga, doutor. Esse pessoal toma droga", respondeu o homem. Daí, perguntei: "Mas o Fleury toma droga? Sempre o vi com camisas de mangas curtas ou arregaçadas, jamais notei sinais no braço dele". E o investigador: "É doutor, mas o senhor nunca viu a perna dele. Manda o delegado levantar a calça e abaixar a meia...é ali que ele se pica". Depois confirmamos a revelação em outros relatos.
O senhor esteve com Fleury?
Nas audiências, várias vezes. E uma vez, creio que até por acaso, nossos carros ficaram emparelhados num sinal de trânsito. Ele ali, eu aqui.
Diria que a estrutura do crime organizado vem desse tempo?
Sim. O regime militar propiciou, em razão do poder que deu aos órgãos de repressão, esse entrosamento entre a polícia e a marginalidade. Entrosamento que hoje está evidente. Por isso insisto no seguinte ponto: uma peça importante para limpar todo esse sistema é a ouvidoria da polícia agindo com absoluta imparcialidade e autonomia. Não falo de uma ouvidoria subordinada ao secretário da segurança ou ao governador do Estado. Falo de uma ouvidoria como havia na época do Mário Covas.
Ouvidorias dariam conta de uma crise como a que foi provocada pelo PCC em São Paulo?
Considero um aspecto grave desta crise: houve um acordo entre o governo do Estado e as facções criminosas. E acordos desse tipo são de ruptura fácil. Basta uma insatisfação e a coisa vai para o espaço. Hoje temos um Estado com mais de 140 presídios e mais de 140 mil pessoas aprisionadas. É um barril de pólvora. Esses presos estão se comunicando o tempo todo - e por quê? Porque não acabar com essas comunicações faz parte do acordo. Digo mais: depois dos fatos de maio deste ano, houve novo acordo. Porque os ataques arrefeceram. Mas continuamos sujeitos a uma nova onda de violência, a qualquer momento.
O senhor não acredita no Regime Disciplinar Diferenciado (RDD)?
Não. O próprio tribunal já se manifestou a respeito da inconstitucionalidade do regime. Não se pode deter uma pessoa por anos num mesmo cubículo, com direito a banho de sol de uma ou duas horas por dia. Isso não existe dentro de um sistema penal que pretende recuperar pessoas. Veja as unidades da Febem. São presídios de menores. Tudo é operado no sentido de conter, não de reabilitar: agravamento das penas, rebaixamento da maioridade penal, construção de presídios de segurança máxima...Um presídio com 500 pessoas é ingovernável. Imagine com dois mil. Por isso diretor de presídio não tem poder. Quem manda são as facções.
Pode-se reverter esse quadro?
Não estou vendo como. O governo federal não conseguiu. O de São Paulo, muito menos. Também não posso entender uma declaração como a do Márcio (Thomaz Bastos, ministro da Justiça) apresentando como grande realização de sua pasta a construção de dois presídios de segurança máxima. No primeiro ano do governo Lula, havia um secretário nacional de segurança pública. Era um sociólogo que tinha um plano, inclusive referendado pelo PT. Falo do Luiz Eduardo Soares. Mas o sociólogo teve que sair para dar lugar a quem? A um delegado.
O livro traz histórias do promotor que viveu em cidades do interior, levando a família de lá para cá. E hoje, como é a vida de promotor?
O MP cresceu muito, deixou de atuar junto às comunidades. Olha, antes de chegar à Capital, trabalhei em Igarapava, Franca, Jaboticabal, Araçatuba, Sorocaba...Era importante a estabilidade do promotor por dois ou três anos numa determinada cidade. Hoje, nem juízes nem promotores precisam mais morar nas comarcas. Viram burocratas: trabalham algumas horas e até logo.
E na Capital?
Há situações incríveis. Um juiz recebe a denúncia, outro interroga o réu, outro ouve a vítima, outro chama duas ou três testemunhas, e um outro oitavo ou nono juiz sentencia. Agora, então, falam em interrogatório virtual, o que é um absurdo completo.
Há juiz para tanto réu?
Pode haver o suficiente. É só descentralizar o sistema e acabar com os palácios da Justiça, como este Fórum Criminal da Barra Funda. O que acontece lá? O promotor da Barra Funda, que fica na região central, pede que seja ouvida uma testemunha que mora em Sapopemba, Zona Leste. O juiz defere e lá vai o oficial de Justiça até Sapopemba. Procura, e não acha a testemunha. Volta para a Barra Funda, mas o promotor insiste. Regressa a Sapopemba. Nisso, já se passou um ano. Um belo dia o oficial encontra a testemunha, que é intimada. Ela vem ao fórum da Barra Funda, e chega com atraso. Então informam que ela terá de esperar até que seja marcada outra audiência. Assim tudo fica para as calendas! E cresce em nós essa terrível sensação de impunidade.
Ainda hoje o senhor se diz inconformado com a Lei de Anistia, por equiparar vítimas e algozes. É uma mancha na nossa democracia?
Não tenho a menor dúvida de que é. Veja a questão dos mortos do Araguaia. Até hoje não abriram os arquivos militares sobre a guerrilha, portanto, não é possível saber o que aconteceu nem onde estão enterradas as pessoas. Agora há uma ação movida pela família da Amelinha Teles, do grupo Tortura Nunca Mais, uma ação declaratória para que o coronel Brilhante Ustra seja reconhecido como torturador. Se os juízes acolherem o pedido, isso poderá abrir o debate sobre a uma lei que não passa de interpretação acomodatícia, feita para acalmar setores das Forças Armadas que estavam envolvidos até o pescoço na tortura. Não pode haver anistia que beneficie torturadores. Existem até recomendações internacionais para que os países não admitam esse tipo de interpretação. Com isso, você teve punições na Argentina, no Uruguai, no Chile. Pinochet está em prisão domiciliar! E no Brasil, nada se fez sob a alegação de que era preciso "pacificar" o País. Mas pacificação não se faz dessa maneira. Só com Justiça.
No atual embate entre a Vale do Rio Doce e a Funai, o senhor tem se mantido a favor da mineradora. Isso surpreendeu muita gente?
Não. Estou agindo contra a omissão do Estado brasileiro. A Vale, para explorar minério de ferro em certas regiões, teve de firmar um acordo com o Banco Mundial assumindo a manutenção das comunidades indígenas nas áreas de extração. E fez isso. O acordo com o banco acabou, mas a Vale continuou repassando recursos para a Funai. E o que vemos hoje? Os recursos não aparecem e os índios vivem na miséria. Revoltados, eles bloqueiam a estrada de ferro Belém-Carajás, impedindo o trabalho da mineradora. Solicitei uma audiência pública na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em Washington, em que serão ouvidos Vale, Funai, líderes comunitários, Conselho Missionário Indígena.
Antes das mobilizações operárias no ABC, o senhor se reunia com amigos como José Serra, Fernando Henrique, Francisco Weffort, Almino Affonso, Plínio Arruda Sampaio, Chico de Oliveira, para discutir a formação de um partido socialista. Isso em meados de 1978. Teria sido possível esse partido?
Creio que sim. Inclusive a candidatura do Fernando Henrique como senador pelo MDB, naquela época, seria uma experiência para saber com que cacife contávamos. E ele teve mais de um milhão de votos como suplente do Montoro.
Consta que o escolhido para a suplência, pelo próprio Montoro, teria sido o senhor...
É...(ri), o Montoro me convidou. Mas eu já estava apoiando Fernando Henrique.
E teria lhe dito que era um erro?
É verdade. Ele disse para mim que era um erro porque, dentro de dois anos, ele sairia candidato ao governo de São Paulo e eu ficaria com a vaga no Senado. Mas eu não poderia voltar atrás. O fato é que Montoro foi para o governo, Fernando Henrique, para o Senado, e, assim como Serra, não quis mais sair do MDB. Os planos do partido socialista não prosperaram e eu acabei indo para o PT em 1980, convencido pelo Plínio. Em 1982, o PT quis que eu fosse o vice na chapa que concorreria ao governo de São Paulo, naquela que seria a primeira campanha política de Lula. Fui convidado com o propósito de "amaciar" a chapa porque Lula era bastante radical. Mas, olha, eu tive a melhor impressão do Lula naquele momento. Um homem inteligente, líder com uma acuidade impressionante. Não reconheço o Lula de antigamente no atual presidente da República. O poder muda as pessoas.
O senhor diz que o "limbo" foi o espaço que lhe coube na administração da prefeita Marta Suplicy, da qual o senhor foi o vice.
Não fui ouvido nem consultado para nada. A não ser para a criação da Comissão de Direitos Humanos da Prefeitura, que é um órgão independente, autônomo, que consegui criar com o apoio da Marta. Mas foi só.É verdade que a Marta queria que eu fosse o Secretário de Negócios Jurídicos da Prefeitura. Eu lhe disse que não achava correto o vice-prefeito ficar subordinado à prefeita, numa secretaria. Ela insistiu, fiquei de pensar. Lembro-me que tivemos esta conversa quando Marta estava de partida para Porto Alegre, onde iria participar do Fórum Social Mundial. Pois bem, soube depois que, lá chegando, ela comentou com Lula que iria passar a secretaria para mim. E ele se opôs firmemente. Tive oportunidade de ser presidente do partido e Lula não quis. Indicou o Gushiken. Fui tirado do Diretório Municipal, em São Paulo, por uma manobra que atendia à vontade de Lula. Meu embate foi com ele. Quando enfiou o Berzoini na presidência do partido, depois da crise do mensalão, então disse "basta". E saí do PT.
O que espera do novo governo?
Nada, até pelo tipo de pessoas que o presidente está trazendo para junto dele. Gente como Jader, Suassuna, Sarney....não tem cabimento esse pessoal mandar do jeito que está mandando. Jorge Gerdau, um empresário comprometido com o desenvolvimento do País, já percebeu e tirou o corpo fora. Não quer ir para o governo. O PT, por sua vez, não formou quadros. O drama do petismo foi ter se convertido em lulismo. E o partido, em aparelho.
Lula se reelegeu, terá de encerrar seu segundo período...
...salvo alguma idéia maluca de terceiro mandato...
Mas ele nega.
Ah, isso se nega até o momento em que se tem que afirmar. Numa Constituinte ele pode pretender continuar. Seria capaz? Ora, veja o Bolsa Família. Não tenho dúvida de que foi feito para reelegê-lo, como, aliás, um dia me disse o próprio José Dirceu, de quem fui amigo. Pode escrever isso.
O projeto Lula desemboca onde?
Nele próprio. Infelizmente.