Das muitas contradições entre o sentido das palavras e a realidade dos atos que têm caracterizado o governo Lula, nos poucos dias passados desde a reeleição, destaca-se com grande evidência a que se refere ao seu relacionamento com a imprensa. Ao reconhecimento de que toda sua trajetória política se deveu ao amplo espaço que sempre obteve na mídia, Lula acrescentou uma profissão de fé na melhoria dessa relação e anunciou a intenção de adotar a rotina das democracias (à qual sempre fora avesso), em que os chefes de Estado e governo dão entrevistas coletivas, em lugar de apenas produzirem falas oficiais lidas no teleprompter das câmeras de televisão, com transmissões compulsórias em rede nacional. Mas seus atos, e os de seis assessores, assumiram significado exatamente oposto ao das intenções reconciliatórias, mostrando um ânimo de autoritarismo censório como se o presidente e seu partido tivessem velhas contas a ajustar com a imprensa.
Foram a truculência dos leões-de-chácara petistas barrando os jornalistas à porta do Alvorada, o interrogatório repressor dos repórteres da revista Veja na Polícia Federal (PF), o grampo pedido (e obtido) pela PF à Justiça em telefones do jornal Folha de S.Paulo, as declarações capciosas do presidente interino do PT, Marco Aurélio Garcia, sugerindo a retratação dos jornalistas quanto ao mensalão (como se a "sofisticada organização criminosa" dentro do governo fosse invenção da imprensa e não constatação do procurador-geral da República), tudo culminando com a espalhafatosa, desnecessária e até chocante diatribe presidencial contra a imprensa de seu país em território estrangeiro - quando, para ajudar a reeleição de Hugo Chávez, se comparou ao caudilho venezuelano, no que diz respeito ao "preconceito" sofrido, por parte da imprensa, empresários e banqueiros (logo estes, imaginem!).
Mas o triunfalismo que dominou o espírito dos que se sentem mais do que consagrados nas urnas - como se estas tivessem aprovado, com louvor, o aparelhamento da máquina do Estado pelo partido governista - parece pretender algo mais do que atacar a imprensa e conduzir com "rédea curta" os veículos de comunicação: transparece, agora, o propósito de transformar a Radiobrás em um dócil instrumento a serviço dos interesses políticos do atual governo federal. Setores do PT - que, à falta de melhor designação, chamaríamos de ala do ocupacionismo ortodoxo - querem aproveitar a reforma ministerial para mudar a direção da estatal de comunicação, por não a considerarem suficientemente "aparelhada".
Dizem eles que a grande estatal - com sua força estrutural representada por três emissoras de televisão, quatro de rádio e duas agências geradoras e distribuidoras de notícias - deveria dedicar-se tão-só à publicidade dos atos e fatos do governo. Consideram um absurdo, por exemplo, que durante a campanha eleitoral até reportagens não favoráveis ao presidente Lula tenham sido veiculadas pelo sistema de comunicação oficial, assim como críticas oposicionistas feitas em discursos no Congresso. O que essa aberrante posição revela é que certos petistas e governistas se sentem avalizados pelas urnas para agir, no segundo mandato de Lula, sem quaisquer limitações na falta de escrúpulo com que se confundem os interesses do partido com os do governo, os do governo com os do Estado e os do Estado com os dos políticos que nele estão a exercer o Poder.
É verdade que, em comparação com os demais órgãos da administração federal, até que a Radiobrás parecia menos "aparelhada" e capaz de mostrar algum laivo de autonomia funcional, na transmissão de notícias relacionadas aos Poderes. Foi, certamente, por sentir a força da presente onda ocupacionista que o atual presidente da estatal, Eugênio Bucci, enviou carta ao presidente da República "colocando seu cargo à disposição". Justamente por ser demissível ad nutum - sem necessidade de explicações por parte de quem o subordina -, Bucci chama a atenção, com tal iniciativa, para a pressão que chega à sua área. Mas o que tudo isso indica, no fundo, é que acabaram de vez os escrúpulos (se os havia) e os disfarces (estes havia) dos que agora se sentem "donos" do Poder e acham que podem permitir-se tudo. Só há um pormenor: estão enganados.