Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, novembro 21, 2006

Democracia periclitante na Bolívia


Editorial
O Estado de S. Paulo
21/11/2006

Aluno aplicado do coronel Hugo Chávez, o presidente Evo Morales está demonstrando grande habilidade em usar os instrumentos da democracia para solapá-la. Na semana passada, ele abriu três frentes de combate ao regime democrático boliviano, a pretexto de instaurar a “revolução democrática e cultural” - que também chama de “refundação” da Bolívia -, um enxerto de bolivarianismo chavista com autoritarismo indígena.

O primeiro lance de Evo Morales foi acionar o rolo compressor governista no Congresso para mudar as regras de funcionamento da Assembléia Constituinte, aprovadas em lei quando ele já era presidente da República. A lei de convocação da Constituinte estabelecia que a nova carta seria aprovada por maioria de dois terços (170 votos de um total de 255). E foi para obter essa maioria qualificada que Evo Morales jogou o peso da máquina administrativa e dos movimentos sociais que o apoiavam nas eleições. Mas parte considerável do eleitorado demonstrou não confiar nos projetos de “refundação”, e o partido de Morales, o Movimento ao Socialismo, obteve uma maioria de 137 representantes, insuficiente para fazer a Constituição à sua maneira.

Nesse fim de semana, seus seguidores no Parlamento resolveram o problema: aprovaram uma interpretação criativa da Lei de Convocação. Agora, cada artigo da nova Constituição será aprovado por maioria absoluta (128 votos) e a cláusula dos dois terços só valerá para a aprovação final do texto e para aqueles artigos que não alcançarem a maioria absoluta. Um referendo popular legitimará a nova Constituição.

O que houve foi um golpe branco. Sob a aparência da normalidade democrática e da manifestação da maioria, mudaram-se as regras fundamentais da convocação da Constituinte e da escolha, já feita pelo eleitorado, dos deputados constituintes.

O esbulho à incipiente democracia boliviana não pára aí.

O vice-ministro de Descentralização, Fabián Yaksic, apresentou um projeto de lei, que Evo Morales faz questão de ver aprovado, que autoriza o Congresso e/ou o presidente da República a afastar de suas funções os governadores que cometerem “falha grave” no desempenho de suas funções. Ou seja, cria condições para o impeachment sumário de governadores eleitos pelo povo. Ora, quando se constata que seis dos nove governadores dos Estados bolivianos são da oposição, fica claro o verdadeiro objetivo dessa manobra de Evo Morales. Segundo ele, os governadores que administrem honestamente o dinheiro público nada têm a temer. Mas o que está claro é que ele quer dispor de instrumentos para livrar-se de opositores incômodos - e, para isso, não hesita em sacrificar o mínimo de estabilidade institucional que existe na Bolívia.

Também é claro que o seu principal alvo é o governador de Santa Cruz. Pois é de lá que Morales espera as maiores reações contra o radical projeto de reforma agrária que a Câmara acaba de aprovar. De fazer inveja ao MST, o projeto acaba com a segurança jurídica da propriedade da terra e abre caminho para a arbitrariedade do Estado e as invasões de fazendas pelos sem-terra locais. Reduzindo para dois anos o intervalo entre as certificações da “função social e econômica da terra”, virtualmente acaba com o agronegócio. Os empresários argumentam que esse curto prazo de dois anos inviabilizará o crédito agrícola e foi fixado intencionalmente para acabar com o agronegócio, que se tornou, na última década, no terceiro setor econômico que mais dá renda e trabalho no país.

Diante da ofensiva de Evo Morales, os governadores de seis Estados - Santa Cruz, Beni, Pando, Tarija, La Paz e Cochabamba - romperam relações com o governo central. “O país observa com preocupação a conduta do governo que tem o selo da prepotência política, o desrespeito das leis e um pronunciado sentimento antidemocrático”, afirmaram. Eles pressionarão o Senado, onde Evo não tem maioria, para que rejeite a “Lei de Recondução Comunitária da Reforma Agrária”. A isso, Morales responde: “Se o Senado resiste, o povo se levantará para fazer aprovar pela força a Lei de Terras.”

Enquanto isso, os partidos de oposição avaliam a conveniência de permanecer na Assembléia Constituinte, onde seu papel seria meramente decorativo.

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