Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, novembro 13, 2006

DANIEL PIZA

Novas narrativas
O Estado de São Paulo 12 de novembro de 2006
Daqui a algum tempo um historiador vai olhar para a narrativa cultivada depois da queda do Muro de Berlim, com o advento mais amplo da tal globalização, e identificar traços comuns que podem ser enquadrados numa expressão que li outro dia na versão brasileira da revista Rolling Stone: “drama multicultural”. É uma literatura – para não falar do cinema – que não só envolve choques reveladores entre nacionalidades ou etnias diferentes, mas que é feita muitas vezes por imigrantes ou descendentes que tomaram posse da tradição (digamos) “euro-americana” e, em alguns casos, até de idiomas como o inglês e o francês. Salman Rushdie, Hanif Kureishi, Kazuo Ishiguro, Michel Ondaatje, J.M. Coetzee, Naguib Mahfouz, Mia Couto, etc. – a mera enumeração dos nomes esclarece. Essa ficção tem sido chamada também de “pós-colonial”, mas este termo é reducionista, e tudo que esse movimento não-programado busca exprimir tem desenho mais complexo.

As referências mais próximas dessas gerações são V.S. Naipaul, o controverso indiano nascido em Trinidad e Tobago que emigrou para a Inglaterra e lá escreveu romances como A Casa do Sr. Biswas; e, acima, Joseph Conrad, o autor polonês naturalizado britânico de O Coração das Trevas, meu ídolo, cujo prestígio finalmente vem chegando aonde deveria – entre os grandes da ficção moderna, como Joyce, Proust, Mann e Kafka. O curioso nessa história toda é que esses autores “multiculturais” – ou interculturais, para ser mais exato – ajudam a ver que o modernismo foi mal interpretado como uma ruptura com o passado, uma exaltação do novo pelo novo, quando na verdade era uma renovação da herança deixada pelos grandes romances europeus dos séculos anteriores.

É de Conrad, não à toa, uma das epígrafes de Neve, o belo romance – que acaba de ser lançado no Brasil (Companhia das letras, tradução de Luciano Machado feita a partir do inglês) – de Orham Pamuk, escritor turco vencedor do Nobel de Literatura deste ano. A frase foi retirada de Sob os Olhos Ocidentais, uma das melhores novelas de Conrad: “O ocidental em mim estava desagregado.” Os outros citados em epígrafe são Stendhal e Dostoiévski, além do poeta Robert Browning. Embora se possa sentir bastante a presença de Conrad, Kafka e do russo anglófono Nabokov, e fazer paralelos com autores do Leste europeu como Ivan Klíma e Danilo Kis, foi nos romanções do século 19 que pensei enquanto lia Neve. Há ligações claras não só com A Cartuxa de Parma e Os Possessos, mas também citações de Turgueniev e Flaubert. A escrita preza por encadeamento e transparência, mais do que fragmento e alegoria.

O desafio de Pamuk, como de muitos de sua geração, é recuperar a força do painel social tecido em torno de um grande personagem. Parte dessa explicação é obviamente a experiência pessoal desses autores: muitas vezes eles presenciaram uma realidade autoritária e brutal que pede que sua literatura reflita sobre ela em vez de se perder em aventuras lingüísticas. Ao mesmo tempo, todos fazem questão de levar para o texto também sua tradição local. No caso de Pamuk, histórias transmitidas oralmente são enxertadas na trama principal, de acordo com a prática médio-oriental. São vozes, como em Dostoiévski, que se entrelaçam à medida que os acontecimentos se sucedem ou surpreendem. Isso explica por que comecei a ler Neve em pequenos goles – um capítulo um dia, dois capítulos em outro – e, de repente, recostado no sofá numa madrugada, mergulhei até o fim das quase 500 páginas.

Não é fácil combinar o contexto histórico com a empatia individual; não projetar grosseiramente o geral no particular, mas deslizar de um para o outro. Pamuk desliza com um toque de melancolia raro, como entre flocos de neve, para usar a metáfora de que ele abusa no livro. Seu protagonista, Ka (neve em turco se diz “kar”), volta da Alemanha para a cidade natal, Kars, no interior da Turquia, a fim de reencontrar antiga namorada, Ípek, que fica sabendo que agora está separada. O enredo soa comum, mas Pamuk tem boas observações sobre o comportamento humano, que é o que esperamos de ficcionistas: quando Ka logo se insinua para Ípek, lê nos olhos dela o recado para que não faça o papel de quem “sempre me amou e não conseguia me esquecer” e lê mais: “O que nos liga é o fato de que ambos diminuímos nossas expectativas em relação à vida.”

Infelizmente esse tipo de descrição e a psicologia de Ípek serão escassos no andamento futuro do livro. Mas Pamuk sustenta o interesse ao colocar Ka numa rede de acontecimentos da política local da qual ele não consegue se descolar. A cidade, que já foi do Império Russo e fica quase na fronteira entre Europa e Ásia, vive momento grave, com mulheres se suicidando por serem obrigadas a não vestir o manto muçulmano em locais públicos. “Outsider”, considerado europeizado pelos islâmicos – o tipo intelectual liberal que repudiam –, Ka testemunha os debates políticos e, “desagregado”, se abre para um dos líderes extremistas, Azul: “Eu quero acreditar num Deus que faz essa bela neve cair do céu. (...) Mas esse Deus não está entre vocês.” Com essa resposta que ao outro soa como orgulhosa e medrosa, começa um afastamento pelo qual Ka vai pagar no que lhe era mais caro, Ípek.

Na brecha entre dois mundos, Ka percebe que seu desejo de ser “ocidental e crente” é ilusório naquelas circunstâncias. Pensando-se imparcial, capaz de captar uma “simetria oculta” na natureza, descobre ser impotente. Numa conversa na parte final, Azul diz o que pensa sobre ele – um agente do Ocidente, que macaqueia o modo de vida alheio e, por não ter religião, “imagina viver num plano acima da gente comum”. O golpe final no seu desejo de entendimento vem na conversa com outra mulher, Kadife, que lhe diz que as mulheres se matam por amor-próprio; para elas, o véu seria uma proteção contra os instintos masculinos, não submissão ao machismo.

Entre leste e oeste, entre prosa e poesia, entre crer e silenciar, Ka descobre que não existe uma simples dicotomia da qual se sairia tomando uma decisão perene – ponto onde a ideologia e a religião se encontram. Esse fluxo de incertezas, porém, não significa abandonar a opinião, e sim o contrário. Eis Pamuk, o próprio. Atacado em seu país natal por ter “ferido a identidade turca” ao dizer que houve um massacre dos armênios em 1915, o escritor tem mostrado preciosa lucidez: foi igualmente contra a lei francesa que decreta prisão para quem negar a existência desse genocídio, tanto quanto aquela que impede as muçulmanas de entrar com véu nas escolas. Assim como rejeita a ira oriental, Pamuk sabe que o Ocidente está perdido. Sem ter o estilo agudo de escritores como Philip Roth, Ian McEwan ou Amós Oz, que igualmente mereceriam o Nobel – e sem deixar que suas cenas peguem fogo, como as de Stendhal e Dostoiévski –, Pamuk faz parte de uma nova linhagem narrativa que também recupera o poder de ver realidades a fundo.

UMA LÁGRIMA

Para William Styron, outro escritor que não tinha medo dos grandes temas e que – ao lado dos conterrâneos Saul Bellow e Philip Roth – ajudou a manter o tônus da narrativa quando a ficção européia se entregava à incomunicabilidade e ao artifício. Além de romances ousados como As Confissões de Nat Turner e A Escolha de Sofia, ele deixou ensaios e uma autobiografia de sua depressão, Perto das Trevas. Não foi Faulkner, mas seu diluidor de qualidade.

RODAPÉ

Na entrevista a este caderno na semana passada, John Gledson, autor de Por um Novo Machado de Assis, fala do sexo na ficção machadiana como se fosse novidade. Mal cita Missa do Galo, o mais sensual de seus contos, e ainda duvida da atração de Bentinho por Escobar, que o próprio Machado descreve como transferida para Capitu. Acha que biografias não podem misturar vida e obra e, mais importante, só diz o que todo mundo diz sobre Machado. Por exemplo: que a reviravolta de 1879-80, responsável por Memórias Póstumas de Brás Cubas, foi de um beco sem saída estético. Foi também pessoal (agravamento das doenças como a epilepsia) e político-social: Machado estava decepcionado com os rumos da monarquia, com a qual se identificava. Não era apenas “crítico da elite brasileira”, distanciado, que se cansara de controvérsias. Era alguém que tinha visto seu mundo cair.

POR QUE NÃO ME UFANO

Orhan Pamuk acharia terrível ver que a Justiça brasileira não pára de aumentar o cerco à liberdade de opinião, como atestam dois casos recentes. Um é o de Emir Sader, processado pelo senador Jorge Bornhausen por ter sido chamado de “racista”, “abjeto” e outros termos. O texto é injurioso, mas, em vez de indenização ou direito de resposta, o juiz pede a prisão do autor e seu afastamento do cargo de professor, o que é um absurdo. Outro caso é o de Demétrio Magnoli, que está sendo processado por Tarso Genro por ter dito que a proposta de classificação racial dos estudantes é anticientífica e retrógrada. Não há insulto algum nem mentira alguma, e mesmo assim o ex-ministro se vê no direito de acuar as idéias de um cidadão.

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