Entrevista:O Estado inteligente

domingo, novembro 19, 2006

CLÓVIS ROSSI O negro e o pedestre

SÃO PAULO - Fui quase a vida toda como 90% (ou mais?) dos motoristas brasileiros. Via no pedestre um estorvo a ser ultrapassado, jamais um ser com direitos até maiores, por estar "desarmado".
Só depois de dirigir umas quantas vezes na Europa, comecei a mudar (menos do que deveria, mas mudar, de todo modo). Lá, o rei é o pedestre. E o é menos por coerção legal ou policial e mais por imposição social. Lá, o motorista corre o risco de ser linchado (no mínimo, no mínimo, com um olhar, um palavrão ou um gesto tão eloqüente que dispensa palavras) se desrespeitar o direito de o pedestre cruzar primeiro a rua. Aqui, é o pedestre que corre o risco de ser atropelado se desafiar o motorizado.
Depois de dirigir na Europa, pavloviano como sou, passei a aplicar aqui as regras de lá. O resultado é absurdamente surpreendente: cansei de receber mesuras exageradas de agradecimento, sempre que deixava um pedestre cruzar tranqüilamente a rua. Fica claro que o pedestre brasileiro acha que eu estou fazendo um favor a ele, em vez de estar simplesmente respeitando um direito dele. Afinal, a faixa é "de pedestre", não de motorista, certo?
Dá a nítida sensação de que a coerção social, aqui, é a inversa: quem pode faz o que bem entende; quem não pode agradece quando o que pode faz o que deveria ser obrigação básica de civilidade. O direito vira concessão.
Conto tudo isso porque desconfio que é essa inversão a responsável, ao menos em parte, pela constatação feita na manchete de ontem desta Folha, segundo a qual a distância salarial entre brancos e negros é tanto maior quanto maior o nível de escolarização.
Ou seja, a "elite branca e má" (conforme Cláudio Lembo) atropela o "pedestre" até quando ele trafega na sua faixa (de escolaridade). Mais que preconceito, são vícios culturais arraigados.

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