Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, agosto 04, 2005

Miriam Leitão :Fora de época

O GLOBO

É constrangedor ver o presidente da República diariamente em campanha eleitoral. Isso é que não dá para engolir. Não é hora, não é a atitude correta de um presidente, não faz sentido. No ano que vem, haverá eleições e chegará a temporada da campanha, quando o presidente Lula disputará o segundo mandato. Se for de novo eleito, que governe corrigindo os erros do passado. Mas agora é hora grave, em que, perplexa, a nação está desacreditando de todos os políticos. Não é hora para bravatas, nem para fanfarronice.
Já se sabe que a versão de dívidas de campanha e formação de caixa dois com empréstimos não pára em pé. As transferências para políticos de diversos partidos da base foram em períodos de campanha e fora dele, foram em épocas de votações importantes, foram sistemáticas, foram generalizadas. O assombro é ainda maior após a declaração do ex-ministro de Portugal Antonio Mexia de que recebeu Marcos Valério na condição de consultor do presidente da República. Faz sentido que um publicitário que presta serviços para o governo vá ao exterior com esse título? Tomara que essa última história seja apenas um delírio de grandeza de Marcos Valério.


Até agora, o que se sabe já é bastante. Já se sabe que há uma meia dúzia de pessoas no Brasil que têm memória seletiva. O fenômeno se caracteriza por lembrar exatamente algumas coisas e esquecer o resto. O ex-ministro José Dirceu esqueceu que participou de todas as nomeações, que concentrou enormes poderes, que tinha a atribuição delegada pelo presidente da República e o cargo de coordenar os outros ministérios e, por um tempo, acumulou funções de coordenador político. A imprensa publicou dia após dia que dele emanava todo o poder de nomear e desnomear. Mas, pela descrição que ele faz agora de suas funções profissionais, foi um ministro fraquíssimo, técnico, cuidando apenas de assuntos administrativos. Marcos Valério, Renilda, Delúbio, Sílvio Pereira e Simone Vasconcelos se esqueceram de fatos fundamentais do que viveram nos últimos dois anos e meio. Pelo visto, Karina Somaggio ficaria rica se vendesse seu elixir da boa memória a todos esses portadores apenas de vagas lembranças.

Simone ontem deixou todos estarrecidos ao exibir uma falha profissional grave. Ela tem uma atitude segura e firme — ao contrário do titubeante Delúbio e do irritante Marcos Valério — mas quer que acreditemos que distribuía aquela montanha de dinheiro sem qualquer registro, nem que seja para se resguardar de qualquer dúvida dos destinatários. Entregava não se sabe a quem milhões e milhões. Aliás, sairá desta com a fama de a caixa dois mais rápida do oeste: usava para aspergir dinheiro sobre a base parlamentar apenas 5% do seu tempo profissional. Nada mais rápido.

Há nos fatos a seguinte sucessão de elos, na visão do deputado Gustavo Fruet:

— Bancos emprestavam dinheiro sem os cuidados devidos; fundos de pensão aplicavam recursos nesses bancos; todos os fundos estavam ligados ao ex-ministro Gushiken, que também controlava as empresas de publicidade, entre as quais as de Marcos Valério eram as mais beneficiadas, e ele, Marcos Valério, é quem pegava os empréstimos e repassava o dinheiro.

O deputado Fruet elogiou, durante o depoimento de José Dirceu, a atitude do Banco Central de resistir à proposta de venda do Banco Mercantil de Pernambuco, sob liquidação do Proer, ao Banco Rural. O BC não confirma ter havido essa proposta, nem a de intermediação de Marcos Valério para o fim da liquidação do Banco Econômico, que favoreceria o antigo controlador, Angelo Calmon de Sá. O que se afirma no Banco Central é que só tem uma forma de suspender a liquidação desses bancos: pagar o que está no contrato. E há uma enorme distância entre o que os ex-controladores dizem ser o valor de passivo e ativo e o que o Banco Central diz.

O que está em questão nessa disputa é como calcular o valor do passivo e das garantias, que seria o ativo. Os ex-donos fazem contas que mostram que têm a receber do Banco Central, mas o BC está garantido pela força do contrato das operações e diz que não há hipótese de aceitar os cálculos dos ex-controladores e permitir que eles retomem os bancos.

Os ex-controladores do Banco Mercantil de Pernambuco acham que devem ao Banco Central R$ 300 milhões e têm a receber R$ 1,8 bilhão das garantias. Para o BC, eles devem R$ 2 bilhões e as garantias valem R$ 1 bilhão. No Econômico, o ex-controlador acha que o passivo é de R$ 5,6 bilhões e que as garantias valem R$ 9,8 bilhões, pagando outras dívidas, o que o ex-controlador quer é receber R$ 1 bilhão de volta. O Banco Central calcula que a dívida é de R$ 20,7 bilhões, muito mais que as garantias, ainda que se aceitasse o cálculo do ex-controlador. No BC, afirma-se que não há possibilidade de os ex-controladores terem lucro nessa operação. Ninguém diz que houve qualquer proposta, fala-se apenas em tese.

O país está gastando energia e tempo parado tentando entender tanta trama, tanta negociação estranha, tanto depoimento longo em que o óbvio é negado pelos diversos atores desta tragédia. Precisa de uma palavra de serenidade do presidente e ele, a cada dia, exibe, de um palanque diferente, um distanciamento cada vez maior da realidade. Ontem Lula incluiu no discurso a palavra ódio. Vamos torcer para ter sido apenas mais um tropeço.

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