Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 21, 2005

Antídoto para o desespero RUBENS RICUPERO

FOLHA DE S PAULO

Para quem não agüenta mais tanta sordidez e baixeza humana, tenho remédio infalível: leia os "Diários" de Joaquim Nabuco, que a Bem-Te-Vi e a Fundação que leva o nome do abolicionista lançaram em Recife no dia 19, aniversário do seu natalício. Há na obra coisas para todos os gostos e para as mais diferentes situações. Até para os tempos de podridão e falsidade que vivemos.
Veja, por exemplo, estas duas pérolas de d. João 6º, colhidas num jantar de Nabuco com o conselheiro João Alfredo, o chefe-de-gabinete que fez a Abolição: comentando a corrupção no Palácio Real, o sábio príncipe ponderou que as grandes casas tinham sempre celeiros grandes, nos quais prosperavam os ratos. "Melhor, porém", dizia o rei, "ratos já gordos e fartos do que os magros e esfaimados." Será essa afinal a explicação que faltava para a espantosa comilança promovida em tempo recorde pelo partido recém-chegado ao poder? O governo a atribui, como se sabe, a traidores vagos e não-identificados. Dom João certamente não cairia nesse logro, pois, a propósito de maridos traídos, Sua Majestade, que era "expert" no assunto, sentenciava: "Nessas coisas, ou bem vingado ou bem disfarçado".
Não se pense, contudo, que os "Diários" se limitem a registrar conversa saborosas dos salões nostálgicos da monarquia que, de outra forma, se perderiam para sempre.
Cobrindo intermitentemente uma vida toda, de 1873, quando Nabuco tinha 24 anos, até poucos dias antes de sua morte, em 1910, com 60, as anotações preservaram muito do melhor do Brasil e do mundo do século 19. A edição é das mais impecáveis e cuidadosas que tenho visto. Dois tomos magnificamente iluminados por fotos e ilustrações coloridas, o papel, os tipos de letra, a diagramação, tudo concorre para dar ao leitor, antes mesmo da leitura, o prazer visual e táctil que faz parte do vício dos que amam o livro não só pelo conteúdo mas como obra de arte, objeto de culto.
Nada é supérfluo: a tocante descoberta que a neta Vivi faz do seu longínquo avô como alguém que continua a viver e sentir naqueles papéis amarelecidos, os prefácios e notas rigorosos, sutis, penetrantes do grande historiador e prosador que é Evaldo Cabral de Mello nos preparam docemente para a experiência peculiar, diferente da ficção e de qualquer outra, que vem da leitura de um diário. Aqui não há distância, a intimidade nos envolve e passamos a morar e comer com o autor; a viajar sem repouso quando se trata de um refratário, como Nabuco, à monotopia, palavra que ele criou para designar o tédio de viver num só lugar; a espiar seus pensamentos e a sonhar os seus sonhos.
É um privilégio ver por meio de seus olhos a Abolição, a República, a Revolta da Armada, os EUA após a Guerra Civil, a França depois da derrota ante a Alemanha e da Comuna; acompanhá-lo nas visitas a George Land e a outros escritores europeus; percorrer com ele os salões brilhantes da Londres Vitoriana e Eduardiana. Insuperáveis são os retratos dos amigos mortos: o talento dispersivo de Eduardo Prado; a bonomia do gênio social de nosso ministro em Londres, Sousa Correia, íntimo do príncipe de Gales, comensal de príncipes e duquesas; o texto proustiano em que disseca a fidelidade inflexível e desesperançada dos monarquistas como a fé que permite bem viver e sobretudo bem morrer, como o desempenho, até o fim, do papel que se traçaram para si próprios na tragédia da história.
Demorei-me mais na parte final, os dez últimos anos da volta à diplomacia e, em especial, os cinco como primeiro embaixador em Washington, tema do seminário que Fernando Lyra e seus colaboradores da Fundação Joaquim Nabuco organizaram para marcar o centenário da criação da embaixada. O tópico é ingrato. Em nossa época, de escasso entusiasmo pelo papel dos EUA, poucos concordariam com Nabuco, que julgava sua contribuição à "aliança não-escrita" com os americanos como a causa que preenchera em sua vida o vazio deixado pela Abolição.
A verdade, no entanto, é que ele e Rio Branco cedo detectaram a ascensão dos EUA como potência global, perceberam que a mudança era irreversível e encontraram em Washington o contrapeso para neutralizar as ameaças que temiam de parte dos franceses no Amapá, dos ingleses na Guiana e na ilha da Trindade, dos alemães em incidentes como o da canhoneira Panther em Santa Catarina. Julgava que sua política tinha a maior das vantagens que pode ter qualquer política -a de não ter alternativa.
Num de seus grandes discursos, disse que sua vida estava concluída porque havia sido plenamente realizado o programa que se traçara: a Abolição, a Federação, a aproximação com os EUA. Só lhe restava acompanhar com sinceridade e paixão os novos destinos do país. E concluía: "Este país está destinado a alcançar proporções de que talvez os que hoje vivem não podem ter a última idéia". Foi há um século, em 1906. A nós o que resta é declarar: Assim seja.

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